A PRIMEIRA IGREJA: RELIGIÃO X ESPIRITUALISMO



Detalhe de Ide portanto (Jesus enviando os Apóstolos para pregar a Boa Nova),
de Harry Anderson.

Edificante é a investigação, o estudo acerca do Cristianismo nos primeiros tempos de sua história; edificante lembrarmos as apagadas figuras de pescadores humildes, grosseiros e quase analfabetos, a enfrentarem o extraordinário e secular edifício erguido pelos triunfos romanos, objetivando a sua reforma integral.

Afrontando a morte em todos os caminhos, reconheceram, em breve, que inúmeros Espíritos oprimidos os aguardavam e com eles se transformavam em anunciadores da causa do Divino Mestre.

[XAVIER, Francisco Cândido (psicografia). Emmanuel: dissertações mediúnicas. Rio de Janeiro: FEB, 2004, 24ª ed., pp. 30-1]

No Cristianismo encontram-se todas as verdades; são de origem humana os erros que nele se enraizaram.

(O Espírito da Verdade. Paris, 1860)

[KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o  Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro. Rio de Janeiro: FEB, Cap. VI, item 05, 120ª ed., 2002,  p.159] 

A Alvorada Cristã
Uma Introdução

A sensação da existência de um mundo e de fenômenos que estão além do ambiente material, este último apercebido por nossos sentidos comuns, sempre acompanhou os homens.

O Céu causava-lhe [aos primeiros humanos] perplexidade e admiração. A Terra, seu habitat, aguçava-lhe o instinto de sobrevivência que era o motivo a impulsionar seu progresso. Ao observar o Sol, a Lua, as Estrelas e Galáxias, relacionava-os aos relâmpagos, trovões, tempestades e outros fenômenos da Natureza, porque tudo lhe provocava o medo e ele necessitava proteger-se das intempéries. Junto ao medo, o respeito e a veneração aos Astros permitia que esse Ser Pré-Histórico os reconhecesse superiores com as forças invisíveis da Criação. Neste instante, suas raízes deixam de ser só materiais e ele passa a reconhecer um elo de ligação entre dois mundos: o visível e o invisível. Perscrutando a Natureza, se sente integrante de dois mundos inter-existentes entre si, mas de conteúdo e manifestações diferentes em essência.

[MONTEIRO, Eduardo Carvalho. Allan Kardec: o druida reencarnado. São Paulo: Eldorado, 2ª ed., out. 1996, pp. 65-6, com adição]  

O desenvolvimento racional e científico das sociedades permitiu que diversos fatos, antes explicados apenas pelo misticismo ou pela fé, fossem realmente esclarecidos. O que a Ciência ainda não consegue explicar não significa que não exista, e felizmente hoje a Humanidade caminha em direção da convivência harmônica entre fé e razão.

Os seres humanos criaram as religiões, institucionalizações da fé, para melhor organizarem as crenças que, de início, os ajudaram a entender o "mundo pré-científico". Portanto, podemos afirmar que o espiritualismo surgiu antes da religião.


O MONOTEÍSMO representa a base das principais religiões da Humanidade.

As evidências abaixo demonstram que a ideia de um único deus, contrariando a antiga visão que afirmava que o paganismo prevalecia nas demais regiões do globo, não surgiu apenas na cultura judaico-cristã-islâmica (além, é claro, do monoteísmo de Akhenaton, no Antigo Egito):

O Stonehenge fica em Wiltshire, na Inglaterra, e foi construído entre 3000 a.C. e 2000 a.C., tendo sido modificado eventualmente ao longo dos últimos cinco mil anos.

Entre os antigos habitantes da Gália (território da Antiguidade que corresponde, em maior parte, à França de hoje), viviam os semnothées ou semnothei, nome que significa "os adoradores de Deus". Por seus conceitos monoteístas da Divindade como Poder Supremo, eles se distinguiam dos povos pagãos. São considerados os ancestrais dos druidas: classes de "pessoas sagradas" nas extintas tribos celtas, surgidas há c.1900 a.C., cujo deus único chamavam de Oiw (pronuncia-se oyune).

Sobre o tema, expomos alguns esclarecimentos à luz do Espiritismo:

POLITEÍSMO

667. Por que razão, não obstante ser falsa, a crença politeísta é uma das mais antigas e espalhadas?

A concepção de um Deus único não poderia existir no homem, senão como resultado do desenvolvimento de suas idéias. Incapaz, pela sua ignorância, de conceber um ser imaterial, sem forma determinada, atuando sobre a matéria, conferiu-lhe o homem atributos da natureza corpórea, isto é, uma forma e um aspecto e, desde então, tudo o que parecia ultrapassar os limites da inteligência comum era, para ele, uma divindade. Tudo o que não compreendia devia ser obra de uma potência sobrenatural. Daí a crer em tantas potências distintas quantos os efeitos que observava, não havia mais que um passo. Em todos os tempos, porém, houve homens instruídos, que compreenderam ser impossível a existência desses poderes múltiplos a governarem o mundo, sem uma direção superior, e que, em conseqüência, se elevaram à concepção de um Deus único.

[KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Trad. Guillon Ribeiro, Rio de Janeiro: FEB]

O MONOTEÍSMO

O que mais admira, porém, naquelas tribos nômadas e desprotegidas, é a fortaleza espiritual que lhes nutria a fé nos mais arrojados e espinhosos caminhos.

Enquanto a civilização egípcia e os iniciados hindus criavam o politeísmo para satisfazer os imperativos da época, contemporizando com a versatilidade das multidões, o povo de Israel acreditava somente na existência do Deus Todo-Poderoso, por amor do qual aprendia a sofrer todas as injúrias e a tolerar todos os martírios.

Quarenta anos no deserto representaram para aquele povo como que um curso de consolidação da sua fé, contagiosa e ardente.

Seguiu-lhe Jesus [invisível, como Espírito, pois só encarnou séculos depois], todos os passos, assistindo-o nos mais delicados momentos de sua vida e foi ainda, sob o pálio da sua proteção, que se organizaram os reinos de Israel e de Judá, na Palestina.

Todas as raças da Terra devem aos judeus esse benefício sagrado, que consiste na revelação do Deus Único, Pai de todas as criaturas e Providência de todos os seres.

O grande legislador dos hebreus trouxera a determinação de Jesus, com respeito à simplificação das fórmulas iniciáticas, para compreensão geral do povo; a missão de Moisés foi tornar acessíveis ao sentimento popular as grandes lições que os demais iniciados eram compelidos a ocultar. E, de fato, no seio de todas as grandes figuras da antiguidade  destaca-se o seu vulto como o primeiro a rasgar a cortina que pesa sobre os mais elevados conhecimentos, filtrando a luz da verdade religiosa para a alma simples e generosa do povo.

[XAVIER, Francisco Cândido (pelo Espírito Emmanuel). A caminho da luz. Rio de Janeiro: FEB, cap. VII (O povo de Israel), 22ª ed., 1996, pp. 68-9, com adição].

Ao explicar a Parábola do Banquete de Núpcias, em Mateus 22: 1 a 14, Allan Kardec resume as origens da sociedade judaico-cristã do ponto de vista moral:

... Jesus compara o Reino dos Céus, onde tudo é alegria e ventura, a um festim. Falando dos primeiros convidados, alude aos hebreus, que foram os primeiros chamados por Deus ao conhecimento da sua Lei. Os enviados do rei são os profetas que os vinham exortar a seguir a trilha da verdadeira felicidade; suas palavras, porém, quase não eram escutadas; suas advertências eram desprezadas; muitos foram mesmo massacrados, como os servos da parábola. Os convidados que se escusam, pretextando terem de ir cuidar de seus campos e de seus negócios, simbolizam as pessoas mundanas que, absorvidas pelas coisas terrenas, se conservam indiferentes às coisas celestes.

Era crença comum aos judeus de então que a nação deles tinha de alcançar supremacia sobre todas as outras. Deus, com efeito, não prometera a Abraão que a sua posteridade cobriria toda a Terra? Como sempre, porém, atendo-se à forma, sem atentarem ao fundo, eles acreditavam tratar-se de uma dominação efetiva e material.

Antes da vinda do Cristo, com exceção dos hebreus, todos os povos eram idólatras e politeístas. Se alguns homens superiores ao vulgo conceberam a ideia da unidade de Deus, essa ideia permaneceu no estado de sistema pessoal, em parte nenhuma foi aceita como verdade fundamental, a não ser por alguns iniciados que ocultavam seus conhecimentos sob um véu de mistério, impenetrável para as massas populares.

Os hebreus foram os primeiros a praticar publicamente o monoteísmo; é a eles que Deus transmite a sua lei, primeiramente por via de Moisés, depois por intermédio de Jesus. Foi daquele pequenino foco que partiu a luz destinada a espargir-se pelo mundo inteiro, a triunfar do paganismo e a dar a Abraão uma posteridade espiritual “tão numerosa quanto as estrelas do firmamento”. Entretanto, abandonando de todo a idolatria, os judeus desprezaram a lei moral, para se aferrarem ao mais fácil: à prática do culto exterior. O mal chegara ao cúmulo; a nação, além de escravizada, era esfacelada pelas facções e dividida pelas seitas; a incredulidade atingira mesmo o santuário. Foi então que apareceu Jesus, enviado para os chamar à observância da Lei e para lhes rasgar os horizontes novos da vida futura. Dos primeiros a ser convidados para o grande banquete da fé universal, eles repeliram a palavra do Messias celeste e o imolaram. Perderam assim o fruto que teriam colhido da iniciativa que lhes coubera.

Fora, contudo, injusto acusar-se o povo inteiro de tal estado de coisas. A responsabilidade tocava principalmente aos fariseus e saduceus, que sacrificaram a nação por efeito do orgulho e do fanatismo de uns e pela incredulidade dos outros. São, pois, eles, sobretudo, que Jesus identifica nos convidados que recusam comparecer ao festim das bodas. Depois, acrescenta: “Vendo isso, o Senhor mandou convidar a todos os que fossem encontrados nas encruzilhadas, bons e maus.” Queria dizer desse modo que a palavra ia ser pregada a todos os outros povos, pagãos e idólatras, e estes, acolhendo-a, seriam admitidos ao festim, em lugar dos primeiros convidados.

No entanto, não basta a ninguém ser convidado; não basta dizer-se cristão, nem sentar-se à mesa para tomar parte no banquete celestial. É preciso, antes de tudo e sob condição expressa, estar revestido da túnica nupcial, isto é, ter puro o coração e cumprir a lei segundo o espírito. Ora, a lei toda se contém nestas palavras: Fora da caridade não há salvação. Entre todos, porém, que ouvem a palavra divina, quão poucos são os que a guardam e a aplicam proveitosamente! Quão poucos se tornam dignos de entrar no Reino dos Céus! Eis por que disse Jesus: “Chamados haverá muitos; poucos, no entanto, serão os escolhidos.

[KARDEC, O Evangelho segundo o  Espiritismo. Idem, Cap. XVIII, item 02]

O presente texto busca trazer esclarecimentos sobre as origens da religião, monoteísta, hegemônica do Ocidente, o cristianismo, cujos preceitos, aliás, não foram criados por Jesus Cristo para se tornarem uma "religião" (no sentido restrito da palavra), mas apenas uma "melhor conduta de vida", moralmente falando.

Jesus de Nazaré ou Cristo (5 a.C - 33 d.C.), semelhante a Sócrates (c.469 a.C - 399 a.C), nada deixou escrito de próprio punho e lembrava um filósofo peripatético: ensinava enquanto caminhava. Aliás, ambos nem mesmo intencionavam fundar algum tipo de doutrina ou religião. Viveram pura e simplesmente de forma ilibada, ensinaram através de palavras e atos sobre a "Verdade" e o "Bem Viver". O Novo Testamento só começou a ser organizado cerca de 47 anos após a crucificação de Jesus. A palavra "cristianismo" surgiu depois da troca das epístolas de Paulo de Tarso (c.5 d.C. - c.68 d.C) e demais seguidores do século I.

Cristo ordenando os Apóstolos, de Harry Anderson

Pode parecer controverso, mas o cristianismo (de acordo com a conceituação existente) não nasceu com Jesus, ou seja, ainda não existia na época em que Ele caminhava pelos antigos territórios da Galileia, Samaria e Judeia. A religião é produto dos demais homens, que se consideravam seguidores do Cristo, e só surgiu cerca de 250 anos após a Crucificação.

O que existia no período anterior ao século IV pode ser chamado de protocristianismo (proto = anterior) de comunidades paleocristãs (paleo = antigo). Logo no início, tais comunidades da Palestina eram integradas somente por judeus convertidos. Devemos lembrar que tanto Jesus quanto seus discípulos estavam inseridos na cultura judaica. Demorou muitos anos para que o cristianismo se desprendesse totalmente de uma sociedade milenar moldada de acordo com as leis dos patriarcas hebreus, como Abraão, Moisés e Davi.

Paulo de Tarso, ao defender a conversão entre os gentios (não judeus ou goy, em hebraico), deu início a "independência cristã" dentro do judaísmo, já que muitos cristãos primitivos ainda seguiam ortodoxos costumes religiosos judaicos (como, além da circuncisão, guardar o sabá ou sábado para descanso, vide Mateus 12:11-12).

O livro Atos dos Apóstolos (no Novo Testamento), descreve provavelmente o primeiro sínodo cristão da História: o Concílio de Jerusalém, por volta do ano 49. Além de Paulo, os principais encabeçadores dessa igreja eram os apóstolos Pedro e Tiago. O Concílio sinalizou um novo e totalmente original caminho aos cristãos, que os afastariam da cultura judaica.

O Evangelho de João, surgido por volta do ano 100, foi um dos principais nortes a esses "novos judeus" e, segundo a leitura de alguns, pode ter iniciado interpretações antissemitas no seio cristão.

A circuncisão do Menino Jesus, de Giovanni Bellini (c.1500)


Luz e Verdade, pintura de Simon Dewey.
Jesus de Nazaré, como os demais judeus de sua época, frequentou sinagogas e o Templo de Jerusalém.

Jesus de Nazaré foi um entre muitos pregadores itinerantes da Palestina do início do século I, que anunciava o fim da servidão do povo, a partir da chegada do Messias. No entanto, diferente da maioria, Ele não referia-se, especificamente, à liberdade política dos judeus contra a dominação romana, mas a libertação espiritual, através da reforma moral, para todos os povos e não apenas ao "povo de Israel".

No princípio, o cristãos eram vistos apenas como membros de mais uma divisão no judaísmo, como os fariseus e saduceus. Os cristãos tinham que seguir as leis judaicas, como a circuncisão feita nos homens. Mas, a partir do ano 49, após o Concílio de Jerusalém, os gentios convertidos da Ásia Menor foram desobrigados da circuncisão e seguiam apenas as leis básicas de Israel. O fato abriu precedentes para diversas modificações nos costumes da sociedade cristã, afastando-a aos poucos da judaica.

Em 135, após a segunda grande revolta judaica, o imperador romano Adriano expulsou todos os judeus sobreviventes de Jerusalém, e proibiu a entrada de outros com a pena de morte. Para muitos cristãos, isso significou a transferência da designação de "povo escolhido por Deus" dos judeus para eles: a Nova Israel.

"Igreja" é um termo originado da palavra grega ekklēsia, assembleia, utilizada pela primeira vez na antiga democracia ateniense. Eis a indicação de certas influências do pensamento grego nas raízes do cristianismo à época das pregações paulinas entre os gentios helenos. Aliás, o ex-fariseu de Tarso defendeu a abolição de costumes judaicos ainda vigentes entre os primeiros cristãos, como a circuncisão: mutilação repudiada por diversos gentios.

Tempos depois denominaram as igrejas primitivas, principalmente as de Roma, de tituli: palavra latina que é o plural de titulus (título, nome ou igreja titular), pois cada casa ou outro imóvel usado para reuniões de cristãos receberam, com o tempo, o nome dos "pais da Igreja" ou presbíteros (veremos sobre este termo mais adiante) que dirigiram ou coordenaram o local, que após se tornou um templo (igreja física). Tal prática surgiu a partir do século IV e as tituli passaram a ser vinculadas aos cardeais romanos (católicos).

Em 313, o Império Romano suspendeu a perseguição aos cristãos. Décadas depois, o cristianismo passou a ser a religião oficial de Roma. O apoio do Estado romano edificou grande número de templos, os mais significativos foram financiados pelo imperadores. As domiciliares "assembleias" ou "títulos" transformaram-se em basílicas, catedrais, paróquias etc. A partir desta "institucionalização da fé", com o aparecimento de um clero repleto de "poderes terrenos" (políticos e econômicos), surgiu a Igreja que conhecemos.

Portanto, o cristianismo primitivo, do século I ao III, surgiu antes das igrejas católicas (romana e ortodoxas), protestantes (luteranas, presbiterianas etc.) e demais segmentos religiosos cristãos. Aqui nos concentraremos no surgimento da Igreja de Roma, a ancestral da atual Católica Apostólica Romana, que foi a responsável por conseguir manter o cristianismo unido até por volta do ano 1000 (época do Primeiro Grande Cisma), apesar de terem existido divergências e secessões bem antes disso.

Ressaltamos que respeitamos todas as religiões voltadas ao Bem. Abordamos a Igreja Romana porque ela faz parte da formação histórico-cultural de nossa sociedade ocidental, e, assim, melhor nos ajuda a distinguir os conceitos sobre religião e espiritualidade à luz do Espiritismo (uma doutrina cristã).

O cristianismo primitivo e puro, deixado por Jesus e seus seguidores próximos, foi sendo modificado ao longo do tempo. As primeiras igrejas eram bastante diferentes das atuais instituições religiosas cristãs.



... a presença de Jesus entre nós foi lida pelas óticas aramaica (Marcos); judaica (Mateus); pagã (Lucas); gnóstica (João); platônica (Agostinho) e aristotélica (Tomás de Aquino).

A unidade na diversidade é característica da Igreja. Basta lembrar que são quatro os evangelhos, não um só: quatro enfoques distintos sobre Jesus. Até a década de 1960, predominava no Ocidente uma única ótica teológica: a europeia, tida como “a teologia”. O surgimento da Teologia da Libertação, com a leitura da Palavra de Deus pela ótica dos pobres, causa ainda incômodo aos que consideram a ótica eurocentrada como universalmente ortodoxa.


 [Trecho da coluna de Frei Betto em http://oglobo.globo.com/sociedade/deus-gay-14329562]

Um pensamento que podemos usar sobre o que ocorreu com os ensinamentos de Jesus, frente o ceticismo, foi dito por um grande escritor russo do século XIX: Quanto mais sublimes forem as verdades mais prudência exige o seu uso; senão, de um dia para o outro, transformam-se em lugares comuns e as pessoas nunca mais acreditam nelas (Nikolai Gógol).

Que é a moral judaica? Que é a moral cristã? A sorte despida de sua inocência; a infelicidade contaminada com a ideia de “pecado”; o bem-estar considerado como um perigo, como uma “tentação”; um desarranjo fisiológico causado pelo veneno do remorso
Nietzsche (em O Anticristo)

De início, vejamos uma esclarecedora abordagem feita pelo maior estudioso espírita do início do século XX, Léon Denis.


Afresco em ruínas da Gruta de Paulo, em Éfeso (na atual Turquia). Obra dos primeiros séculos do cristianismo: uma imagem sobre as primeiras comunidades cristãs.

O Cristo nada escreveu. Suas palavras, disseminadas ao longo dos caminhos, foram transmitidas de boca em boca e, posteriormente, transcritas em diferentes épocas, muito tempo depois da sua morte. Uma tradição religiosa popular formou-se pouco a pouco, tradição que sofreu constante evolução até o século IV.

Durante esse período de trezentos anos, a tradição cristã jamais permaneceu estacionária, nem a si mesma semelhante. Afastando-se do seu ponto de partida, através dos tempos e lugares, ela se enriqueceu e diversificou.

Efetuou-se poderoso trabalho de imaginação; e, acompanhando as formas que revestiram as diversas narrativas evangélicas, segundo a sua origem, hebraica ou grega, foi possível determinar com segurança a ordem em que essa tradição se desenvolveu e fixar a data e o valor dos documentos que a representam.

Durante perto de meio século depois da morte de Jesus, a tradição cristã, oral e viva, é qual água corrente em que qualquer se pode saciar. Sua propaganda se fez por meio da prédica, pelo ensino dos apóstolos, homens simples, iletrados , mas iluminados pelo pensamento do Mestre.

Não é senão do ano 60 ao 80 que aparecem as primeiras narrações escritas, a de Marcos a princípio, que é a mais antiga, depois as primeiras narrativas atribuídas a Mateus e Lucas, todas, escritos fragmentários e que se vão acrescentar de sucessivas adições, como todas as obras populares.

Foi somente no fim do século I, de 80 a 98, que surgiu o evangelho de Lucas, assim como o de Mateus, o primitivo, atualmente perdido; finalmente, de 98 a 110, apareceu, em Éfeso, o evangelho de João.


Gravura do séc. XIX representando a pregação do Evangelho 
(palavra de origem grega, que significa "Boa Nova") no início da Era Cristã.

Ao lado desses evangelhos, únicos depois reconhecidos pela Igreja, grande número de outros vinha à luz. Desses, são conhecidos atualmente uns vinte; mas, no século III, Orígenes os citava em maior número. Lucas faz alusão a isso no primeiro versículo da obra que traz o seu nome.

Por que razão foram esses numerosos documentos declarados apócrifos e rejeitados? Muito provavelmente porque se haviam constituído num embaraço aos que, nos séculos II e III, imprimiram ao Cristianismo uma direção que o devia afastar, cada vez mais, das suas formas primitivas e, depois de haver repelido mil sistemas religiosos, qualificados de heresias, devia ter como resultado a criação de três grandes religiões, nas quais o pensamento do Cristo jaz oculto, sepultado sob os dogmas e práticas devocionistas como em um túmulo.

Os primeiros apóstolos limitavam-se a ensinar a paternidade de Deus e a fraternidade humana. Demonstravam a necessidade da penitência, isto é, da reparação das nossas faltas. Essa purificação era simbolizada no batismo, prática adotada pelos essênios, dos quais os apóstolos assimilavam ainda a crença na imortalidade e na ressurreição, isto é, na volta da alma à vida espiritual, à vida do espaço.

Verdadeiras atitudes cristãs seguindo os exemplos de Jesus:
Duas ilustrações representando o apóstolo Pedro atendendo os irmãos desvalidos.


Através da mediunidade de cura, os apóstolos e demais seguidores realizaram verdadeiros "milagres". E disse Pedro [ao aleijado pedinte]: Não tenho prata nem ouro; mas o que tenho isso te dou. Em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, levanta-te e anda (Atos 3:6).

Daí a moral e o ensino que atraíam numerosos prosélitos em torno dos discípulos do Cristo, porque nada continham que se não pudesse aliar a certas doutrinas pregadas no Templo e nas sinagogas.

Com Paulo e depois dele, novas correntes se formam e surgem doutrinas confusas no seio das comunidades cristãs. Sucessivamente, a predestinação e a graça, a divindade do Cristo, a queda e a redenção, a crença em Satanás e no inferno, serão lançados nos espíritos e virão alterar a pureza e a simplicidade ao ensinamento do filho de Maria.

Esse estado de coisas vai continuar e se agravar, ao mesmo tempo em que convulsões políticas e sociais hão de agitar a infância do mundo cristão.

Pintura cristã ortodoxa sobre os primeiros Pais da Igreja.

O culto aos santos possui origem romana. Paradoxalmente, Paulo de Tarso, um dos principais Pais da Igreja, por ser de origem judaica, era contra a adoração aos ídolos, fato visto nas imagens dos santos católicos. Alguns dos primeiros cristãos, a exemplo dos Apóstolos, foram santificados ou canonizados de acordo com a herança da cultura greco-romana:

Os mortos eram tidos como seres sagrados. Os antigos davam-lhes os epítetos mais respeitosos que pudessem achar; chamavam-nos bons, santos, bem-aventurados. Tinham por eles a veneração que o homem pode ter pela divindade que ama ou teme. Em seu pensamento, cada morto era um deus.

[FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martin Claret, 2009, p.30].

Os primeiros Evangelhos nos transportam à época perturbada em que a Judeia sublevada contra os romanos, assiste à ruína de Jerusalém e à dispersão do povo judeu (ano 70). Foi no meio do sangue e das lágrimas que eles foram escritos, e as esperanças que traduzem parecem irromper de um abismo de dores, enquanto nas almas contristadas desperta o ideal novo, a aspiração de um mundo melhor, denominado “reino dos céus”, em que serão reparadas todas as injustiças do presente.

Nessa época, todos os apóstolos haviam morrido, com exceção de João e Filipe; o vínculo que unia os cristãos era bem fraco ainda. Formavam grupos isolados entre si e que tomavam o nome de igrejas (ecclesia, assembléia), cada qual dirigido por um bispo ou vigilante escolhido eletivamente.

Cada igreja estava entregue às próprias inspirações; apenas tinha para se dirigir uma tradição incerta, fixada em alguns manuscritos, que resumiam mais ou menos fielmente os atos e as palavras de Jesus e que cada bispo interpretava a seu talante.

Acrescentemos a estas tão grandes dificuldades as que provinham da fragilidade dos pergaminhos, numa época em que a imprensa era desconhecida; a falta de inteligência de certos copistas, todos os males que podem fazer nascer à ausência de direção e de crítica, e facilmente compreenderemos que a unidade de crença e de doutrina não tenha podido manter-se em tempos assim tormentosos.


A última prece dos mártires cristãos (1883), de Jean-Léon Gérôme.

Os pacíficos cristãos eram vistos como uma ameaça política à Roma. Romanos proeminentes, como o cônsul e filósofo Marco Cornélio Fronto (preceptor do imperador Marco Aurélio), por volta de 150 d.C., espalhavam acusações falsas de que eles desrespeitavam os costumes e leis romanas. Os cristãos, em verdade, recusavam-se a adorar as divindades romanas, assim como reverenciar os imperadores como deuses. No entanto, a coragem dos mártires impressionavam os pagãos, o que estimulava mais conversões.


As tochas de Nero (c.1876), de Henryk Siemiradzki.

Durante os três primeiros séculos de nossa era, os seguidores do Cristo foram perseguidos e martirizados esporadicamente pelas autoridades romanas pagãs. Como forma de sobrevivência, os cristãos formaram uma sociedade secreta. Em Roma, reuniram-se nas históricas catacumbas, onde também eram sepultados.

Os três Evangelhos sinóticos [de Marcos, Mateus e Lucas] acham-se fortemente impregnados do pensamento judeu-cristão, dos apóstolos, mas já o evangelho de João se inspira em influência diferente. Nele se encontra um reflexo da filosofia grega, rejuvenescida pelas doutrinas da escola de Alexandria.

Em fins do século I, os discípulos dos grandes filósofos gregos tinham aberto escolas em todas as cidades importantes do Oriente. Os cristãos estavam em contato com eles e freqüentes discussões se travavam entre os partidários das diversas doutrinas. Os cristãos, arrebanhados nas classes inferiores da população, pouco letrados em sua maior parte, estavam mal preparados para essas lutas do pensamento. Por outro lado, os teoristas gregos sentiram-se impressionados pela grandeza e elevação moral do Cristianismo. Daí uma aproximação, uma penetração das doutrinas, que se produziu em certos pontos. O Cristianismo nascente sofria pouco a pouco as influências gregas, que o levava a fazer do Cristo o verbo, o Logos de Platão.

[Trecho de Cristianismo e EspiritismoCap. I: As Origens dos Evangelhos, de Léon Denis, 1ª ed. 1910, com adição]


CASA do CAMINHO

A primeira igreja cristã de fato


Cena rural romana (c.1880), de Henryk Siemiradzki.

Na obra Boa Nova (1ª ed. 1941), do Espírito Humberto de Campos, pela psicografia de Francisco Cândido Xavier, sabemos que algum tempo após o Calvário reuniram-se, na ocasião das ascensão de Jesus ao Reino Celestial, quinhentos seguidores da Galileia. Estas pessoas receberam a missão de divulgar os ensinamentos do Mestre. Alguns fundaram os primeiros núcleos cristãos que seriam chamados, por extensão das assembleias, de "igrejas".

O pesquisador e autor espírita brasileiro Jorge D. Martins, através de fontes de alta credibilidade, como nos casos dos médiuns Yvonne Pereira, Chico Xavier e Divaldo Franco, trouxe, das sombras do passado, há muito esquecido, para a luz do presente, um belo exemplo de como vivam e quem eram os principais membros da primeira igreja (comunidade) do cristianismo primitivo. Certo núcleo cristão conhecido por Casa do Caminho.

Essa comunidade específica infelizmente teria durado pouco tempo, provavelmente menos de dez anos, talvez do ano 34 ao 42 (quando a perseguição aos cristãos foi oficializada pelos romanos). A Casa, situada à margem do caminho da saída de Jerusalém, foi fundada pelos apóstolos Simão Pedro e Tiago Menor algum tempo após a crucificação de Jesus Cristo (depois do ano 30). Estava estruturada em um cenáculo (imóvel espaçoso geralmente usado como refeitório), simples e arejado, junto ao monte Olival (ou das Oliveiras), cerca de dois quilômetros do centro da cidade antiga (onde estava o Templo).

Bem distinta de muitas igrejas atuais, a Casa, que abrigava alguns dos primeiros cristãos da História, cultivava, de fato, a vida em comum. Quem quisesse fazer parte e, por acaso, possuísse algum bem, deveria vendê-lo, e os valores dessa venda eram dados aos cuidados dos apóstolos, que distribuíam-nos à comunidade.

Assim fez o ex-publicano Zaqueu Matias, que se desligou das funções aduaneiras, em Jericó. Deixou parte dos bens à família, outra parte aos pobres, e as terras aos camponeses necessitados; manteve apenas o necessário à subsistência (ver Martins, p.79-80). Diferente da passagem do jovem rico, Zaqueu, que era talvez bem mais rico, seguiu os conselhos do Mestre: ... vende quanto tens, dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu: e vem, segue-me (Mateus 19,21 e Marcos 10,21).

Nos primeiros anos da Casa do Caminho, por volta de 120 homens e mulheres de várias idades habitavam esse local de socorro aos necessitados de toda espécie, como enfermos, deficientes físicos e mentais, viúvas na miséria, famintos, mulheres desonradas, idosos abandonados, soldados inválidos ou falidos, obsidiados etc.

Primeiramente, cada um estava encarregado de alguma tarefa interna, trabalhando no que soubesse fazer de melhor. Depois, dirigiam-se às tarefas externas, para a manutenção constante das necessidades da Casa. Por exemplo, quem era versado em ciências e outros conhecimentos, poderia buscar recursos como preceptor; na falta disso, sempre havia trabalhos braçais fielmente remunerados, sobretudo pelos romanos aos homens livres.


Vilarejo na Roma Antiga (c.1880), de Henryk Siemiradzki.
Os primeiros cristãos viviam em comunidades simples e compartilhavam seus bens, muito diferentes de diversas instituições religiosas de hoje.

Os membros mais ilustres eram:

Maria de Nazaré, mãe de Jesus. Logo após a crucificação do Filho, aos cuidados de João, o Evangelista, e Zaqueu Matias, Maria residiu na Casa por alguns anos, mas terminou seus dias terrenos em Éfeso, na atual Turquia;

Simão Pedro, ex-pescador galileu e apóstolo, chamado por Jesus de Cefas (pedra), visto que foi a “pedra fundamental” (coordenador ou supervisor) das primeiras igrejas cristãs. Séculos depois foi considerado o primeiro papa da Igreja de Roma;

José de Arimateia, homem de posses natural de Arimateia, na Judeia, foi considerado discípulo (ver João 19,38) e doador do sepulcro de Cristo;

O ex-rabino Nicodemos, que foi esclarecido pelo Mestre sobre a reencarnação (ver João 3,1-15);

Alfeu (em aramaico, Halphai), também dito Cleófas (Klõpas), pai de Tiago Menor (ou o Moço), Judas Tadeu e Levi Mateus, e casado com certa Maria (parenta, talvez irmã, de Maria de Nazaré, ver João 19,25). Alfeu Cleófas foi um dos que encontrou Jesus “ressuscitado” em Emaús (ver Lucas 24,18). Além dos três já citados, também foi pai de certo José (ver Mateus 13,55 e Marcos 15,40) e Simão, que, segundo Eusébio de Cesaréia, substituiu Tiago na direção da Casa, após o martírio do irmão no ano de 62. Tiago Menor, Judas Tadeu, Levi Mateus, José e Simão eram primos legítimos de Jesus Cristo;

Cuza (ex-funcionário, despenseiro, de Herodes Antipas, ver Lucas 8,3) e a esposa, Joana, que o converteu (uma das vidas passadas de Joanna de Ângelis, mentora do médium brasileiro Divaldo Franco);

Zebedeu, pai de Tiago Maior e João, o Evangelista. Esses dois apóstolos também eram membros (apelidados de Boanerges, “filhos do trovão”, talvez, devido à natureza enérgica dos pescadores galileus de Betsaida, ver Marcos 3,17). Os citados dois filhos de Zebedeu também residiram na Casa por alguns anos.  Tiago foi condenado à morte por Herodes Agripa no ano 43. João na velhice ficou preso na ilha grega Patmos, onde provavelmente ditou o livro Apocalipse (Revelação, em grego). Após vários anos foi solto e faleceu por volta dos 100 anos (o único apóstolo de Jesus Cristo que não foi martirizado) ;

Jairo, ex-rabino e chefe da sinagoga de Cafarnaum, cuja filha o Nazareno reviveu (curou da catalepsia, ver Marcos 5,21-24 e 38-43), e a própria menina já crescida (na época da cura, tinha por volta de 12 anos);

Suzana, mulher curada por Jesus (Lucas 8,3), e Salomé, testemunha da cena da Cruz (Marcos 15,40), e do sepulcro vazio (Marcos 16,5 e Mateus 28,9). Ambas trabalhavam na cozinha;

Marcos, filho da irmã de Simão Pedro (segundo Pastorino, ver também Marcos 14,51-52) e sobrinho do companheiro-missionário de Paulo de Tarso: Barnabé (ver Paulo e Estevão, do Espírito Emmanuel por Chico Xavier);

As filhas do apóstolo Filipe (segundo Padres Apostólicos, de Pápias de Hierápolis) e, evidentemente, o pai delas;

Maria Madalena ou de Magdala (localidade donde veio, às margens do Mar da Galileia), ex-prostituta que, junto as outras Marias, atendia no Vale dos Leprosos, próximo à Jerusalém;

O apóstolo Judas Tomé, dito Dídimo (“gêmeo”, ver Lucas 6,15), que teria duvidado da ressurreição do Senhor (João 20,24-28). Diziam que Tomé era muito semelhante a Jesus, por isso era chamado de “gêmeo”, no entanto, apenas nos costumes nazireados, ou seja, dos nazarenos: mantinha cabelos e barba longos e a rotina de jejuns e orações. Por sua excelente memória, auxiliava o também apóstolo Levi Mateus a escrever um dos Evangelhos;

José Barnabé, de Chipre, que vendeu seu campo, a fim de repartir a riqueza para o benefício de toda a comunidade (ver Atos 4,32-37);

O médium José Barsabás, dito o Justo, foi irmão, do também médium, Judas Barsabás (Atos 15,22 e 32). Homem de fé inabalável, teria ingerido veneno sem sofrer dano algum pela graça do Senhor (segundo História Eclesiástica, de Eusébio de Cesareia);

EstevãoJudeu de Corinto (Grécia) nascido com o nome de Jeziel. Após a morte do pai, ao se revoltar contra os romanos, foi feito escravo. Depois de ser libertado por um bondoso senhor, foi recolhido enfermo pela Casa do Caminho. Tornou-se amigo dos apóstolos Tiago, João e Pedro e adotou a Doutrina Cristã. Como era de costume entre os convertidos, mudou o nome para Estevão (símbolo do renascimento ou batizado cristão e, no caso dele, despistar seus perseguidores). Passou a ser famoso pregador do cristianismo até ser preso pelos fariseus de Jerusalém por heresia. Saulo de Tarso foi um dos juízes que o condenou à morte por apedrejamento. É considerado pela Igreja de Roma o protomártir ou primeiro santo mártir cristão.

O já citado ex-chefe dos publicanos (arquitelônes) de Jericó, Zaqueu Matias (Lucas 19,1-10). Considerado o 13º Apóstolo, por ter sido sorteado, por Simão Pedro, para substituir Judas Iscariotes (na ocasião, concorreu com Barsabás). Zaqueu, ao contrário do que os demais judeus pensavam dos publicanos, sempre foi um homem bom, que ajudava os necessitados. Permaneceu junto ao Cristo, mesmo quando a maior parte dos discípulos O abandonou na cruz. Homem culto que lecionava aos jovens letras, matemática, grego, latim e alguns dialetos, inclusive em casas particulares ricas, a fim de garantir seu sustento e o da Casa, quando não realizava trabalhos braçais – de carpinteiro, pedreiro, hortelão etc. - dentro e fora da comunidade.

Os anos se sucederam, os discípulos diretos de Jesus se dispersaram para divulgar a Boa Nova. As igrejas se multiplicaram, porém a Casa do Caminho, pelas injunções humanas e a ausência do Conselho de Apóstolos e presbíteros, sem dizer das perseguições malévolas do sacerdócio organizado do judaísmo, ruiu e desapareceu fisicamente no tempo.

Bibliografia: MARTINS, Jorge Damas. O 13º apóstolo, as reencarnações de Bezerra de Menezes. Niterói-RJ: Lachâtre, 2004.

Da Simplicidade à Suntuosidade


A freira germânica Ana Catarina Emmerich (1774-1824), hoje beatificada pela Igreja, teria tido uma visão mediúnica, que mostrava uma casa em forma de cruz no alto de um monte, no qual avistava-se o mar Egeu e as ruínas da antiga Éfeso.

No local teria residido a Virgem Maria com o apóstolo João, que a levou consigo de Jerusalém, na antiga província romana da Judeia (hoje Palestina e Israel), a Éfeso, na Capadócia (Turquia atual), por volta de 37 d.C. Nesse lar humilde, erigido de rochas, Nossa Senhora teria vivido até desencarnar, por volta do ano 41. Pode ter sido considerada uma das primeiras igrejas no uso restrito da palavra (local de reunião de alguns dos primeiros cristãos).

Ao longo do século XIX, inspirados pelas visões da freira, vários cristãos do Ocidente passaram a procurar pela casa. Em 1881, um abade francês finalmente descobriu as ruínas de uma residência em forma de cruz, mas não foi levado a sério. Dez anos após, padres lazaristas redescobriram a casa ao observarem peregrinos depositando flores no sítio no dia 15 de agosto: festa canônica da Assunção de Maria.

A Meryem ana ou Meryem Ana Evi ("Casa da Mãe Maria", em turco) localiza-se no monte Koressos, de 400 m de altitude, localizado a 8 Km de Éfeso. Há uma fonte próxima, da qual as águas são consideradas bentas por terem sido supostamente usadas pela Virgem. 

Mesmo sem comprovação histórica, em 1896 o papa Leão XIII declarou a casa um dos patrimônios das peregrinações cristãs. Recentemente, testes com carbono 14 comprovaram que as bases da construção datam do século I.

Os muçulmanos também frequentam o local, pois Maria foi mãe de Jesus: profeta venerado pelo Islã. No entanto, não visitam o interior da casa por possuir imagens humanas (rejeitadas pela religião fundada por Maomé).



Após o Édito de Milão (313 d.C.), que concedia liberdade religiosa ao adeptos do cristianismo, os cristãos puderam sair das catacumbas de Roma e começaram a construir grandes templos, ou basílicas, à maneira dos edifícios pagãos greco-romanos. A basílica ou arquibasílica de São João de Latrão ou laterana tornou-se a primeira catedral dos cristãos ao ser consagrada em 324.

O imperador Constantino I e a mãe, Santa Helena, fundaram os primeiros templos ou igrejas do cristianismo, a exemplo da Igreja da Natividade, em Belém (na atual Cisjordânia), consagrada em 327. Helena percorreu a Terra Santa e diversas outras regiões da Palestina identificando supostos locais e relíquias sagradas do tempo de Jesus Cristo.

O culto às relíquias (restos mortais ou objetos particulares) dos mártires e demais santos, iniciado nas catacumbas, passou a ser exercido nos altares dos templos. Infelizmente, como o passar do tempo, a prática do simonismo (comércio ilegal de relíquias sagradas geralmente falsas) também tornou-se comum no mundo cristão.


A Arquibasílica de São João Laterano, em Roma, foi erguida sobre as ruínas do Castra Nova equitum singularium, o "novo quartel da cavalaria imperial", de Septímio Severo, construído em 193 d.C. A região foi ocupada pelos Lateranos - membros de eminente família plebeia de Latrão (região central de Roma) - que serviram como administradores a muitos imperadores. O Palácio Apostólico de Latrão, anexo à basílica, é uma das residências dos papas, onde ocorreram importantes concílios e tratados. A atual arquitetura foi estabelecida a partir da Renascença.


Depois da elevação do cristianismo como religião oficial e única dos romanos, diversos templos pagãos foram cristianizados, a exemplo do magnífico Panteão de Roma (erguido em 126 d.C.), que foi consagrado à Santa Maria dos Mártires em 609. Como anteriormente era dedicado ao culto de todos os deuses (em latim, pan: tudo, todos + theon: deuses, divindades), o templo passou a cultuar todos os santos (festa litúrgica comemorada no dia 1º de novembro desde o século IX).

Praça de São Pedro, com a basílica homônima ao fundo e o obelisco à direita (marcando o local onde supostamente foi erguida a cruz de Pedro), no Vaticano.

A tradição cristã afirma que o apóstolo Pedro - considerado o Primeiro Papa - foi crucificado, na segunda metade do século I, no alto da colina Vaticano, em Roma. Neste mesmo sítio, os restos mortais foram sepultados. Entre 319 e 333, o imperador Constantino I ergueu no local uma basílica, em forma de cruz latina, dedicada a Pedro. Os bispos de Roma ou papas, passaram, pois, a viver e também ser sepultados na região do Vaticano. O complexo arquitetônico atual começou a ser desenvolvido somente a partir do século XV, sobre as ruínas da antiga basílica latina. Em 1929, o Vaticano, antes um bairro de Roma, tornou-se uma cidade-Estado separada da Itália.

O mundo cristão passou a contar os anos a partir do suposto ano do nascimento de Jesus Cristo, quando foi estabelecido o Ano I ou Ano do Senhor (antes da cristianização do Império Romano, os anos eram contados a partir da fundação da cidade de Roma). Por séculos, antes da divisão entre Estado e Igreja, que estabeleceu o Estado laico, a vida cotidiana nas sociedades cristianizadas girava em torno do calendário litúrgico da Igreja. O calendário acima é o atual do catolicismo no Brasil. O termo "católico" (do grego, katholikos) significa "universal" e foi basicamente estabelecido a partir do século XVI, como uma reação contra a Reforma Protestante.

RECAPITULANDO...

Mapa (em inglês) da expansão do cristianismo (período de conversões), do século IV ao IX, no Velho Mundo. Os pontos negros representam os centros (cidades) de difusão dos missionários.

UM OUTRO OLHAR SOBRE A DECADÊNCIA DO IMPÉRIO ROMANO:

A IGREJA PRIMITIVA (30-313)

Sua atuação se dá em Atenas, Jerusalém, Éfeso, Corinto, Roma, Alexandria, Antioquia e Tessalônia. Eram as próprias comunidades que financiavam as peregrinações dos Apóstolos e Peregrinos Evangelizadores pelo mundo todo. Eles aceitavam a própria morte e torturas física por amor a Jesus.

Os primeiros cristãos mudavam as cidades, mexiam com o sistema. Podemos dividir esse período em: “Período Apostólico” (30-70 d.C), “Período Sub-apóstólico” (70-135 d.C) e “Período dos Mártires e da Institucionalização da Igreja” (135-313 d.C). O termo “Apóstolo” significa “enviado”, em grego. Missionários itinerantes, que tiveram contato com Jesus de Nazaré. Foram testemunhas oculares. Até o ano 100 d.C os cristãos ainda são bem desconhecidos. Os romanos os confundem com os judeus. Aos poucos, o cristianismo vai mostrando sua existência. Era o início da “Grande Igreja”.

O Cristianismo nasceu e desenvolveu-se dentro do quadro político-cultural do Império Romano. Durante três séculos o Império Romano perseguiu os cristãos (época das perseguições, iniciadas por volta do ano 42, no início do reinado do Imperador Cláudio), porque a sua religião era vista como uma ofensa ao Estado representava outro universalismo e proibia os fiéis de prestarem culto religioso ao soberano. Aos poucos se propagou em Roma e pelo império. 

As principais e maiores perseguições foram as do imperador Nero, no século I (morte de Paulo, Pedro), a de Décio no ano 250, a de Valeriano (253-260) e a maior, mais violenta e última: a de Diocleciano, entre 303 e 304, que tinha por objetivo declarado acabar com o cristianismo e a Igreja. O balanço final desta última perseguição constituiu-se num rotundo fracasso, Diocleciano, após ter renunciado, ainda viveu o bastante para ver os cristãos viverem em liberdade.

No século IV, o Cristianismo começou a ser tolerado pelo Império, para alcançar depois um estatuto de liberdade e converter-se finalmente, no tempo do imperador Teodósio (379-395), em religião oficial do Estado (380). O imperador romano, por esta época, convocou as grandes assembleias dos bispos, a saber, os concílios e a Igreja puderam então dar início à organização de suas estruturas territoriais.

Alguns fatos importantes: 

· O Concílio de Jerusalém (49 d.C) à Ele seria o marco definitivo da ruptura do judaísmo com o cristianismo. A admissão de gentios (não-judeus) era um fato de difícil compreensão para os cristãos-judeus, que ainda se encontravam em parte presos às velhas tradições e práticas antigas. Foi presidido pelo Apóstolo Pedro. Seria o Concílio de Jerusalém, o primeiro deles. Assim foi aceito o batismo de não-judeus. “A salvação é pela fé e pela graça, não pela observância da Lei” (At 15:7-11).

· Início do Monaquismo (séc. IV) à A Cristandade instrumentaliza a Igreja pelo Estado até um determinado ponto. Alguns bispos e os ascetas (eremitas) percebem esse perigo da “mundanização da Igreja”, pois o imperador está “na Igreja e não acima da Igreja” (Santo Ambrósio, bispo de Milão). Eremitas (Latim) / Anacoretas “ir para” (Grego) / Mônacos (Grego) à pessoas solitárias que fugiam do convívio das cidades e aldeias e iam para as margens do deserto. Esses bispos escrevem textos assinalando fronteiras, pois a igreja está no mundo, mas não é o mundo. Ela podia ser protegida pelo Estado, mas não queriam pagar com a sua submissão perante ele.

Fonte: https://www.catequisar.com.br/texto/colunas/juberto/01.htm


ARTE PALEOCRISTÃ*
os registros dos primeiros cristãos




Mártires nas catacumbas (1855), de Jules-Eugene Lenepveu.

O principal "espólio teológico" do cristianismo é o monoteísmo hebraico. A estrita dependência de uma força divina invisível, inapreensível e quase impossível de nomear, o Deus único, anulou toda intenção representativa (pinturas, esculturas, desenhos sobre o Criador). A adoração e culto dos judeus, então, procuraram outros caminhos diferentes da forma plástica habitual vista nas demais civilizações. O islamismo, outro herdeiro desse monoteísmo, seguiu esse preceito à risca.

Os cristãos, no entanto, desenvolveram um processo expansivo e cosmopolita, não centrípeto como os judeus. A encarnação divina no fundador da crença, Jesus Cristo, e a redenção dos homens através dele, marca o rumo centrífugo do movimento cristão, que, em boa parte, se impregna do universalismo do mundo romano-helenístico no qual nasce.


O Cristo possibilita uma imagem corpórea (antropomórfica) da divindade de origem hebraica e facilita a representação plástica dela, negada pelos judeus. A convivência com a civilização greco-romana obriga o cristianismo a confrontar-se com esta e absorver, ainda de maneira não explícita, muitos dos componentes culturais e artísticos.


Por fim, a marca do proselitismo da religião cristã - por causa do crescente número de conversões de pagãos - redunda em uma exigência de materializar e ampliar a sua presença que, como é óbvio, alimenta as realizações construtivas e artísticas.

Através das decorações pictóricas paleocristãs, notamos identificações com a arte romana-pagã daquele tempo. Encontram-se em afrescos do início do século III, como no cubículo do Bom Pastor das catacumbas de Domitila, na cripta de Lucina nas catacumbas de São Calisto, nas catacumbas de Priscila e da cripta de São Genaro na gruta de Pretestato. Eram produzidas por mãos não muito habilidosas, pois os artistas de mais prestígio somente trabalharam na arte cristã a partir do Édito de Milão de 313.

O preceito de que o cadáver do cristão devia ser inumado (herança hebraica) e não incinerado (tradição greco-romana), assim como a ideia de que o solo onde recebia a sepultura era sagrado, - por ter sido abençoado para receber em depósito um corpo destinado à ressurreição -, fez aparecerem os cemitérios cristãos. Quando as comunidades cristãs eram pequenas, os campos-santos tinham dimensões reduzidas, por isso às vezes utilizavam os jardins na parte posterior das casas patrícias (de nobres romanos). Com o aumento da população cristã, surgiram os cemitérios públicos com os modelos que existem até hoje: túmulo próximo à superfície com alguma indicação (cruz, lápide etc.).


Nas catacumbas de São Calisto, notam-se os sepulcros nas paredes.

A partir do século III, diversos cemitérios cristãos ampliaram a profundidade transformando-se em necrópoles subterrâneas. O nome "catacumba" adveio da denominação do cemitério romano de São Sebastião, situado em um "terreno baixo": ad catacumbas. Os melhores exemplos são as das romanas cristianizadas Domitila e Priscila.


A sociedade cristã deixou de sepultar seus mortos em locais secretos, também utilizados para reuniões de fins religiosos e comunitários, somente com o cessar das perseguições. No entanto, outros afirmam que as catacumbas não eram locais ocultos ou proibidos pelas autoridades pagãs hostis, pois o direito romano sempre reconheceu os collegia salutaria ou associações funerárias.



Parte das catacumbas de Priscila, decorada com afrescos, utilizada para assembleias comunitárias.

Mesmo sob as leis de tolerância religiosa, os cristãos continuaram a sepultar seus mortos nas catacumbas, a fim de repousarem junto aos mártires e confessores. Possivelmente foi no século IV que esses locais serviram de assembleia cristã. Além disso, até o século V era proibido trasladar os restos mortais dos santos.

As catacumbas possuem uma série de galerias subterrâneas ou corredores (ambulacri) estreitos para aproveitar o espaço ao máximo. Nas paredes laterais, há túmulos longitudinais pouco profundos (lóculos ou nichos). Alguns possuem arcossólios para indicar que ali descansa o corpo de um mártir ou santo especialmente venerado.


Os corredores alargam-se de vez em quando formando uma pequena câmara (cubiculum ou cripta) para nela reunir algumas sepulturas destacadas, como as dos primeiros pontífices. Assim ocorreu com a cripta do papa São Dâmaso na catacumba de São Calisto.


Em outros casos, a câmara encontra-se no final de uma galeria, possui um banco de pedra comprido, como presidência, o assento para o bispo ou supervisor, indicando, portanto, as assembleias da comunidade.



Túmulo ou arcossólio vazio ornamentado com um afresco de Cristo ensinando aos Apóstolos (século IV), catacumbas de Domitila.


Nas galerias superiores, situam-se lucernários abertos para o exterior, que proporcionam a luz e ventilação de que carecem as inferiores. Também se abrem nos corredores algumas capelas como criptas, com seu respectivo cancelo de separação.

Porém, diferente da arte pagã, também notamos o simbolismo (em parte retomado por artistas entre os século XIX e XX, como o francês Odilon Redon) reforçado na "filosofia cristã": plenitude e desmaterialização das figuras, hieratismo, fuga do concreto e característico, desinteresse pelo ambiente e pelo mundo sensível (material ou físico) etc.

Os artistas cristãos utilizavam motivos correntes na arte pagã os quais, depois de esvaziar de conteúdo, dotavam uma nova simbologia (fizeram o mesmo nos templos politeístas), e assim o tema das estações passou a ser considerado símbolo da renovação da vida, através da conversão cristã ou batismo. Orfeu com os animais passou a ser Cristo como pastor de almas, e este foi figurado com atributos do deus Apolo como "luz do mundo" (por isso geralmente o Nazareno aparece, ainda nesse momento, imberbe).

Detalhe de O Bom Pastor (século III), afresco das catacumbas de Domitila. Nítida referência a Jesus travestido em tradicionais pinturas da mitologia pagã, a exemplo de Orfeu.

Tal recriação de conteúdo sobre figuras correntes servia a dois propósitos: meio mais adequado para ser aceito pelos observadores (acostumados com os temas pagãos) e precaução diante das perseguições contra os cristãos.

As primeiras conhecidas manifestações pictóricas do cristianismo, que sobreviveram ao tempo, são do ano 232: cenas que decoram uma pia batismal nas ruínas de um lar cristão encontrado em 1931 em Dura-Europos, na Síria, à margem do Eufrates. As figuras das supracitadas catacumbas também foram produzidas no século III.

Como o cristianismo surgiu no meio judaico da Antiguidade, era de se esperar que os primeiros cristãos, sobretudo do Oriente, não representassem figuras de humanos ou animais atendo os preceitos mosaicos que condenavam o culto aos ídolos.


O Bom Pastor (século III) do Museu Pio Cristiano, Vaticano. Este mármore cristão é nítida cópia e readaptação de esculturas greco-romanas pagãs.

Por outro lado, a partir do desenvolvimento da arte figurativa judaica (anos antes) nas sinagogas, e da relativa tolerância religiosa dos imperadores Severos (de 193 a 307), os seguidores de Jesus começaram a definir o universo de formas cristãs, abrangendo imagens simbólicas e ciclos narrativos de textos bíblicos. Curiosamente, o predomínio de temas do Velho Testamento era maior nos primeiros tempos do cristianismo (provas da forte influência das raízes judaicas no coração das comunidades cristãs antes do século IV).

Os temas escolhidos representam, além do Cristo e dos sacramentos, a solicitude de Deus pelos fiéis e a fé e perseverança na "verdadeira religião" (sempre recompensada no mundo físico ou espiritual): Noé orando na Arca, o sacrifício de Isaac, a ressurreição de Lázaro, Pedro Caminhando sobre as águas etc. A ideia da ressurreição ou da salvação pela fé persistem em todos os temas.



Detalhe de Pregador Cristão, afresco das catacumbas de São Calisto (século III).

O cristianismo gerou uma concepção metafísica da beleza, uma nova concepção estética do mundo que substituiu a expressão clássica ou heleno-romana. Quando tornou-se uma religião hegemônica, a arte seguiu sua linha de pensamento: o naturalismo cedeu ao sobrenaturalismo (espiritualismo), o monismo (a existência de apenas uma espécie de realidade; o monismo pré-socrático e aristotélico, os mais influentes, priorizavam o mundo sensível ou a matéria) ao dualismo (bem e mal, alma e corpo, espírito e matéria), o antropocentrismo ao teocentrismo. O homem deixa de considerar-se o centro da realidade e se submete à centralidade de Deus.

A prática da representação através das belas-artes (escultura, pintura, gravura, desenho, artes decorativas) progrediu bastante quando a crença imigrou para demais territórios do Império Romano, como Grécia, Itália e Alexandria (no Delta do Nilo), onde a tradição e o incentivo à produção artística figurativa-antropomórfica sempre foi enorme.

O berço geográfico do cristianismo, a Palestina do século I, apresenta uma simbiose civilizadora: um poder político romano, um sistema religioso hebraico e uma cultura (filosofia, artes etc.) helenística. A arte cristã primitiva mescla aspectos clássicos com o novo conceito estético do cristianismo. Podemos encontrar, pois, personagens em cenas bíblicas (como Jesus pregando) trajados como romanos pagãos.


Detalhe de Mulher com véu (Virgem Maria, Madalena, Priscila?) (fins do século III). Catacumbas de Priscila.

A língua grega era o principal idioma de comunicação intelectual (o latim dos romanos, naquele momento, era mais usado no ambiente burocrata e judiciário). Os Evangelhos, produzidos por volta do ano 50, foram escritos na mesma raiz linguística falada por Sócrates, Platão e Aristóteles. O cristianismo absorve, em sua doutrina, a figura da deidade bíblica e elementos fundamentais das crenças hebraicas como são o monoteísmo, a superioridade abismal de Deus em relação aos homens e à ideia da redenção, mas também noções próprias do espiritualismo helenístico e, em especial, a dualidade corpo-alma e sua consequência estética mais determinante: a superioridade da beleza da alma no caminho a Deus. Em outras palavras, despreza-se o mundo sensível clássico e defende-se a supremacia absoluta da esfera espiritual.


Estavam fixadas as fundações do pensamento e da estética da Idade Média no Ocidente (século V ao XV). A representação artística deve servir ao bom êxito do "olhar interior" (os olhos da alma). O objeto representado não tem um valor em si mesmo, como móvel de prazer estético, mas unicamente na possibilidade que comocione o espírito, provocando no homem o abandono de si mesmo e a contemplação divina. Até por volta do ano 1000, seguindo a orientação agostiniana, a arte deixou de ser a expressão da beleza sensível para ser a expressão da beleza espiritual. A arte deve comover o espírito para elevá-lo a Deus. Não procura agradar esteticamente, mas sugerir a transcendentalidade através da forma. A representação física (o fim em si mesma na arte clássica) é apenas o caminho para a intuição metafísica.



O Convite (ágape ou ceia cristã) (século II ou III), afresco das catacumbas de Priscila.

Na arte paleocristã, após um primeiro momento no qual persiste o pós-classicismo romano, efetua-se um retorno ao estilo antinaturalista (sem fidelidade às reproduções das formas reais) das civilizações arcaicas anteriores ao helenismo. O que importa são as figuras como símbolos evocativos, pois o homem está sujeito a uma esfera superior.


Este retrato-afresco de Cristo (século IV), das catacumbas de Commodila (em Roma), ladeado com as letras gregas "alfa" e "ômega", é uma das primeiras representações de Jesus com características hebraicas reproduzidas até hoje: barbado e de cabelos longos segundo o costume nazareno. Isso pode significar que a obra foi produzida logo após o fim das perseguições contra os cristãos.

Quando o cristianismo deixou de ser uma crença com poucos seguidores, as galerias estreitas das catacumbas não serviram mais às assembleias. Surgiu a cela memoriae como um templete ou pequena capela no exterior que indicava, no subsolo logo abaixo, a existência de uma tumba importante. Tais celas deram origem a um tipo de templo funerário (martyrium) que se ergue sobre um lugar venerado ou que contém um subterrâneo onde se conserva uma tumba ou relíquia importante. Pouco a pouco essas construções funerárias adquiriram proporções maiores. A basílica destaca-se das modalidades dos templos cristãos (surgida em 313). A Basílica de São Pedro, no Vaticano, é o maior exemplo desse princípio.

As formas das basílicas cristãs não surgiram apenas das formas dos grandes templos romanos pagãos. O primitivo templo cristão era considerado a casa de Deus, e as primeiras comunidades cristãs romanas utilizavam para suas reuniões as casas patrícias. A lógica nos diz que as origens da basílica estão nas formas de uma casa romana ampliada e transformada, semelhante aos lares romanos, onde os cristãos se reuniam para o ágape ou refeição de confraternidade.


Um exemplo: a Igreja de San Martino ai Monti (São Martinho dos Montes) em Roma, cuja raiz é uma casa patrícia. Distinguem-se as partes pública, semipública e privada, além de dependências anexas. Em um espaço aberto ao público (catecúmenos), pessoas que não eram batizadas (não cristãs simpatizantes) podiam intervir nas cerimônias. Na parte privada, havia um espaço destinado à habitação.



Parte posterior da Igreja San Martino ai Monti, que lembra um domicílio. Embora as fundações datem do século III, o imóvel foi bastante modificado ao longo dos séculos.

Isso não exclui a influência também da sinagoga ou de templos de cultos orientais, nem a ideia da basílica ser uma solução sincrética, de acordo com as necessidades do culto: local que une reuniões comunitárias, rituais religiosos e sepulturas de cristãos mais relevantes à sociedade.

No período paleocristão, os arquitetos apenas aperfeiçoavam a construção dos vãos das paredes nos templos (muitos eram antigos imóveis da adoração politeístas), principalmente das janelas que aos poucos se ampliavam, a fim de facilitar a penetração da luz no interior das igrejas. Por ventura, usavam placas de alabastro translúcidas nas janelas ainda reduzidas e é possível que colocassem alguns vitrais simples.


Mausoléu de Gala Placídia, em Ravena (construção entre 425-433).
A esposa do imperador Constantino III teria sido sepultada no local. Interessante notar a aparência eclética da arquitetura: templo cristão (em forma de cruz), mausoléu e casa patrícia.

Somente séculos depois, com o maior desenvolvimento da vidraçaria, ergueram templos bastante elaborados, como os dos estilos medievais românico e gótico, no qual a luz do sol, refratada em múltiplas cores, penetrava num ambiente totalmente isolado do mundo exterior (material); o interior, assim, conduzia os frequentadores à melhor sacralização ou espiritualização.


Os edifícios do cristianismo primitivo possuem aspectos que definem o período inicial da Idade Média, mesmo coexistindo com as construções pagãs do final da Antiguidade. A arte selecionou e tomou do mundo romano (ocidental e oriental) diversos elementos para criar uma nova linguagem que se adaptou às exigências da fé cristã. A relativa pobreza da maioria das construções e as reduzidas dimensões refletiram o modo de vida dos primeiros cristãos: a sociedade foi organizada em pequenas células ou paróquias em volta do episcopus (supervisor ou bispo), por isso não necessitaram de edifícios de grande tamanho. Os edifícios deveriam ter o máximo de funcionalidade e economia, tanto nos materiais utilizados quanto na organização do espaço. Os imóveis cristãos mais elaborados e imponentes só apareceram a partir do século VII.

O cristianismo como religião oficial do Estado romano fez surgir novos temas gozando de singular pujança. Tal é o Cristo em Majestade, como um imperador romano: o homem mais poderoso conhecido. As simetrias representativas davam validade a "verdadeira religião", a exemplo de Deus entregando a Lei a Moisés e Cristo entregando-a a São Pedro.


Reconstituição digital de um templo em Roma. Há diversos aspectos que lembram os costumes dos templos católicos (as estátuas sagradas, o altar-mor, os incensórios etc.) a começar pelas variadas designações dadas a uma mesma "entidade sagrada". Por exemplo, a deusa Vênus Obsequens (Propícia) ou Vênus Genetrix (Mãe) etc. No cristianismo romano temos, em alusão a esse aspecto, a Nossa Senhora da Conceição, a Nossa Senhora do Bom Parto etc.

A institucionalização do cristianismo como religião oficial do Império Romano, no início do século IV, não garantiu uma conversão sincera de todos aqueles que viviam na pátria romana. Muitos ligaram-se ao cristianismo por conveniência, para obter vantagens políticas, e mantiveram crenças e práticas pagãs, gerando sincretismos ao longo do tempo.


Deuses Guardiões do Lar ou Oferendas aos Deuses (1880), 
de John William Waterhouse.

Os penates eram os deuses responsáveis pelo bem-estar e prosperidade das famílias. Seu nome vem de Penus, a despensa, que a eles era consagrada. Cada chefe de família era o sacerdote dos penates de sua própria casa.

Os lares eram também deuses domésticos, mas diferiam dos penates por serem considerados espíritos de mortais divinizados. Os lares de uma família eram almas dos antepassados a proteger os descendentes.

[BULFINCH, Thomas. O livro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Trad. Luciano Alves Meira. São Paulo: Martin Claret, 2006, cap. I, p. 27]

Um oratório de Santo Antônio de Pádua (séc. XVIII) no Museu do Oratório de Ouro Preto (MG). Herança cultural dos cultos aos Lares, que ainda persiste. Trazidos ao Brasil pelos colonizadores católicos, os nichos dos "santinhos protetores" também são comuns, por exemplo, em estabelecimentos comerciais tradicionais de certas famílias portuguesas, como em padarias, quitandas, açougues e bares.

 Cabeças votivas em terracota da cultura etrusca, autor desconhecido do século VI ou V a.C. Essas esculturas eram oferecidas aos deuses em agradecimento à cura de alguma enfermidade. Os antigos romanos herdaram essa mesma prática religiosa.

Os católicos herdaram dos romanos pagãos a fabricação de cabeças e demais objetos, desta vez feitos de cera, em oferenda aos santos cristãos por graças conseguidas.

A partir do final do século IV, com a subida de Teodósio ao trono romano, estimula-se um afã de riqueza, como a utilização do mosaico no lugar das pinturas murais para recobrir as paredes dos templos. Incrementam-se os valores narrativos com fins didáticos e de propaganda político-religiosa romana (Estado+Igreja). Estende-se a representação de santos e mártires, patronos das igrejas físicas e irmandades cristãs que começam a pulular pelo império, frutos de uma crescente classe eclesiástica.

A tradição da estética pré-Édito de Milão permanece: a arte cristã é herdeira da arte clássica. Elementos iconográficos falam da reutilização de temas leigos ou pagãos (Cristo entronado como imperador, as figuras sacras, como a Virgem e anjos, relacionadas à deusa Vitória e o conjunto lembra as cenas de reunião de filósofos clássicos). Composição e figurativismo explicados apenas como amostras da arte greco-romana.

A arte dedica-se a realçar os grandes protagonistas da religião cristã - o Cristo, a Virgem, os apóstolos e santos -, não as pessoas comuns e desconhecidas pela maioria.


No entanto, diferente da idolatria pagã na Pré-História e no Antigo Egito, que consideravam o ídolo (pintado ou esculpido) a representação e a divindade ao mesmo tempo - como o bezerro de ouro das crônicas do Êxodo -, a forma representada é apenas uma lembrança e um reclamo da fé. Os paleocristões não procuram uma visão da divindade na forma da arte, mas uma intuição de Deus.

Entretanto, alguns observam que as pinturas e esculturas sacras do catolicismo (ditas imagens) chegaram, até hoje, ao tênue limite da adoração idolátrica.


Opondo-se a Bizâncio, o desaparecimento brusco de Roma ocidental, no século V, encabeçado pelas invasões bárbaras, provocou um afastamento de identidade com a estética clássica por séculos (que durou até o Renascimento, surgido no século XV). Portanto, a "desclassização" na arte paleocristã somente ocorreu a partir da queda do Império do Ocidente. Do século I ao Va arte cristã primitiva conservou uma afinidade técnica com a arte pagã greco-romana com a qual conviveu.


*Fonte: História Geral da Arte (coleção). Madrid: Ediciones del Prado, 1995-97.


O Batismo do Cristianismo Romano

A palavra "episcopado" é de origem grega (epi + skopeo: ver de cima), a qual podemos traduzi-la por "encargo", "cargo" ou "ofício". Alguns traduzem por "bispado", mas o significado mais preciso seria "supervisor". Esse "encargo" também pode ser traduzido por "ministério".

A palavra grega diakonias gerou o atual vocábulo "diácono", ou seja, alguém que realiza uma missão especial. O verbo dioko quer dizer "perseguir". Neste caso, pois, diácono é alguém que persegue ou segue algum serviço em particular e muito importante. Do termo, surgiu a "diocese": território em que um bispo exerce jurisdição (arquidiocese ou patriarcado).

O Novo Testamento, em particular as epístolas de Paulo de Tarso, cita diversas pessoas que auxiliaram na fundação da sociedade cristã, os chamados "protocristãos" ou primeiros cristãos. Entre eles, encontramos os Sete Diáconos, reconhecidos pela Igreja, das sete principais comunidades do cristianismo no século I:

I- Estevão, o primeiro mártir cristão (Jerusalém);
II- Filipe, o Evangelista: chamado assim para diferenciá-lo do apóstolo homônimo, seria autor de um evangelho apócrifo (Cesareia Marítima);
III- Prócoro (Antioquia);
IV- Nicanor (Chipre);
V- Timon ou Timão (Corinto);
VI- Parmenas (Filipos, na Macedônia);
VII - Nicolas (Éfeso).

Desde o séc. IV, o cristianismo, aos poucos, deixou de ser composto apenas por simples comunidades, para desenvolver-se na poderosa, rica, complexa e hierárquica Igreja romana.


A Igreja também reconheceu os Setenta Discípulos de Jesus mencionados em Lucas 10:1-24. Eis alguns deles:

Ananias de Damasco, quem restituiu a visão a Paulo (médium de cura).

Tito de Creta, discípulo direto de Paulo cujo nome intitulou uma epístola.

Timóteo de Éfeso, outro discípulo paulino cujo nome intitulou outras epístolas.

Lino de Roma, considerado o segundo papa da Igreja romana.

João Marcos ou Marcos, o Evangelista (foi considerado bispo de Alexandria, no Egito).

Simeão, filho de Cleófas, que foi considerado segundo bispo de Jerusalém.

Tabita ou Dorcas, mulher a qual Pedro "ressuscitou" (curou da catalepsia), ver Atos 9:36-42.

A cultura católica, herdeira da judaica, não disponibiliza às mulheres encargos ou funções religiosas de maior destaque, porém, Paulo, considerado um dos Pais da Igreja e suposto defensor da hegemonia masculina, talvez tenha reconhecido em uma "irmã em Cristo" o posto de diaconisa: Recomendo-vos a nossa irmã Febe, que está no serviço da igreja em Cencreia (Romanos, 16:1). Cencreia ou Kechries, vilarejo a 7 Km ao sudeste de Corinto, na Grécia.

Outra mulher importante na pregação paulina foi Priscila ou Pequena Prisca, esposa do cônsul Áquila (Acilius): ela e o marido foram seguidores e auxiliares de Paulo em Roma (citados em Atos, Romanos, I Coríntios e II Timóteo). Algumas catacumbas romanas receberam o seu nome.

As palavras "diácono" e "bispo" foram algumas das primeiras denominações dos clérigos atuais. Aliás, o termo kleros está ligado ao vocabulário "sorte" (destino, fado, fortuna). Pois, os primeiros clérigos, que antes tinham que se candidatar a algum cargo, eram "escolhidos por sorte", ou melhor, sorteados segundo a escolha ou vontade de Deus.

Aliás, como dizia o estudioso e autor espírita brasileiro Newton Boechat (1928-1990), o acaso é o pseudônimo de Deus, quando Ele não quer assinar. Jorge Martins utilizou tal frase ao se referir à eleição de Matias, através de sorteio, para dar seguimento ao apostolado do então falecido Iscariote.

Até hoje a escolha de diversos clérigos, a exemplo do próprio sumo sacerdote ou chefe da Igreja Católica, o papa, acontece por uma espécie de "lançamento de sorte". Neste caso, o sufrágio entre cardeais, do qual o resultado supõe-se ser obra do Espírito Santo ou da Vontade Divina influenciando a escolha dos homens.

Aliás, os diversos primeiros chefes da Igreja, a exemplo dos papas do século I - PedroLinoAnacletoClemente I Evaristo (todos elevados ao título de "santo") - apenas coordenavam ou supervisionavam as primitivas e simples comunidades cristãs no coração do Império (espécie de conselheiros ou consultores). Nunca imaginaram que seriam elevados à chefia da cristandade postumamente, pois nunca esperaram privilégios pelo cumprimento desse divino dever.


 ... tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja... (Mateus 16,18).
Usando a afirmação acima do Cristo, a Igreja de Roma justificou a apropriação e elevação da figura do ex-pescador Simão Pedro (ou Cefas) como primeiro chefe e fundador da Igreja cristã romana. No entanto, a lógica nos diz que Jesus não se referia à pessoa física Pedro, mas à do apóstolo (petram e não Petrum, demonstrando que houve um erro, intencional ou não, na tradução do grego para o latim). Este pensamento era defendido por alguns dos principais doutores da Igreja, como Agostinho de Hipona.

Pedro seria considerado também o "porteiro do Céu" de acordo com a afirmação seguinte: E eu te darei as chaves do reino dos céus; e tudo o que abrires na terra será aberto nos céus, e tudo o que fechares na terra será fechado nos céus (Mateus 16:19). 

No entanto, sobre isso, parece-nos mais plausível uma simples explicação dada pela Revelação Espírita: Sede bons e caridosos, essa é a chave dos céus que tendes em vossas mãos. Toda a felicidade eterna se encerra nestas palavras: "Amai-vos um aos outros." A alma só pode elevar-se nas regiões espirituais pelo devotamento ao próximo... (mensagem do Espírito São Vicente de Paulo, Paris, 1858, em O Evangelho Segundo o Espiritismo, Allan Kardec, Rio de Janeiro: CELD, Cap. XIII, §12, 2001, p.231). 

Portanto, qualquer um que aja como Jesus agiu - sendo ou não cristão - pode abrir as "portas do Paraíso" para si e para outras pessoas, caso sirva de bom exemplo (ou fechar, caso seja um mau exemplo).

***
Os chamados "Pais da Igreja", do século I ao III, eram apenas - guardando as devidas proporções temporais quanto às atribuições dos cargos - supervisores, coordenadores, administradores ou diretores das comunidades; longe estavam dos cargos de chefia atuais de papas ou bispos (como mais tarde lhes foram atribuídos pela Igreja).



Os ensinamentos universais dos bispos deviam ser organizados por uma única liderança: o bispo de Roma, "sucessor direto de Pedro e Paulo", que seria conhecido como papa. Um dos primeiros a propor isso foi o bispo Irineu de Lião, ou Santo Irineu, falecido por volta de 202. Muitos cristãos de Roma defenderam a proposta de Irineu.

Somente após a queda do Império Ocidental, no século V, o bispo de Roma ganhou poder secular digno de um imperador, a fim de por ordem no vácuo caótico deixado pelo extinto império.

Habemus Papam

O termo "papa" está ligado ao termo "pontífice", de origem romana. Um pontífice era um dos sacerdotes mais ilustres da antiga religião pagã romana e membro do Colégio de Pontífices de Roma. O nome literalmente significa "construtor de pontes"*, pontes espirituais, que ligam o mundo material ao imaterial.

*Nesse sentido há uma conexão com um dos significados literais de "religião": do latim, re + ligare (religar, reconectar); e "médium", do latim medius, nesse caso a pessoa sensitiva intermediária entre o mundo físico e o espiritual (nas culturas tribais, seria o xamã, feiticeiro ou mesmo sacerdote).

Pontifex Maximus (Pontífice-Mor, uma espécie de Sumo Sacerdote de Roma) era a mais alta posição dada a um pontífice, sobretudo durante a República. Com o tempo, o título deixou de ser estritamente religioso para ser também político. O mais conhecido Pontifex Maximus foi Júlio César (100-44 a.C.). A partir da cristianização de Roma, os Bispos da capital do Império tomaram o título de Pontífice Maior para si.

Todo religioso eleito bispo (supervisor) de Roma é de imediato feito papa ("pai", em grego): o "suplente ou principal representante terreno de Jesus Cristo". Aliás, os papas também são chamados de "vigários de Cristo" (vigário é um padre adjunto de um prior). O nome "papa" surgiu a partir do título "patriarca", com Héraclas de Alexandria (séc. III), ainda utilizado pelos chefes das igrejas ortodoxas. 

Não se sabe, exatamente, qual bispo de Roma foi o primeiro a denominar-se "papa". Sabe-se que, em 607, o imperador romano Flávio Focas Augusto favoreceu a criação do Papado oficialmente; o bispo desse período foi Bonifácio III, considerado o 66º papa.

Contudo, a autoridade papal "de fato" já havia surgido dois séculos antes com Leão I (séc. V), época em que o Império Romano do Ocidente, já cristianizado, foi extinto pelas invasões bárbaras, e os cristãos necessitavam de uma autoridade religiosa forte o bastante para manter as nações "fiéis ao Cristo" unidas. Leão I, dito o Grande, só precisou remanejar a organização romana preexistente (leis, língua, exército, burocracia etc.).


Encontro entre Leão, o Grande, e Átila (1514), de Rafael Sanzio. 
O afresco rafaelino, do Palácio Apostólico (Vaticano), mostra o Papa Leão I (c.400-461), montado em um cavalo branco à esquerda. Acima dele volitam os santos Pedro e Paulo munidos de espadas. Ao centro está Átila montado em um cavalo escuro e assustado pela aparição dos santos católicos.

Há tempos os papas, e demais membros do alto clero, ante às sociedades mais complexas do que às da Antiguidade, deixaram de ser homens simples, como Simão Pedro, ex-pescador galileu, para serem, como na Idade Média e Moderna, poderosos príncipes ou imperadores: donos de terras, exércitos e tesouros.

Fonte principal: MARTINS, pp.91-92.


E A IGREJA ROMANA OU LATINA PASSOU A SER "UNIVERSAL"

No início da Reforma Protestante, o Concílio de Trento, em 1545 e 1563, determinou, indiretamente, que a Igreja Católica (Universal) era a única intérprete autorizada das Escrituras e da tradição apostólica, o que permitiu o surgimento do Tribunal do Santo Ofício ou Inquisição, para combater os hereges e demais opositores com mais violência (sobretudo na Península Itálica, nos reinos ibéricos e nas suas colônias).

Pintura retratando o Concílio de Trento (século XVI).

Ao longo do tempo, a centralização do poder decisório da "religião romana" culminou no Primeiro Concílio do Vaticano, em 1870, que sancionou a infalibilidade do papa. A medida iniciou o movimento do ultramontanismo: pensamento que defendia o pleno poder papal e era contrário às reformas civis e nacionais, como por exemplo, a laicalidade: separação entre Estado e Igreja.

O Espírito Emmanuel, através da mediunidade de Chico Xavier, expôs fatos históricos sobre o período da criação da Igreja romana atual:

OS BISPOS DE ROMA

Nos primitivos movimentos de propaganda da nova fé, não possuíam nenhuma supremacia os bispos romanos entre os seus companheiros de episcopado e a Igreja era pura e simples, como nos tempos que se seguiram ao regresso do seu divino fundador às regiões da Luz. As primeiras reformas surgiram no quarto século da nossa era, quando Basílio de Cesareia e Gregório Nazianreno instituíram o culto aos santos.

Os bispos romanos sempre desejaram exercer injustificável primazia entre os seus coirmãos; todavia, semelhantes pretensões foram sempre profligadas, destacando-se entre os vultos que as combateram a venerável figura de Agostinho [...].

Desde o primeiro concílio ecumênico de Niceia convocado para condenação do cisma de Ário, continuaram as reuniões desses parlamentos eclesiásticos, onde eram debatidos todos os problemas que interessavam ao movimento cristão. Datam dessas famosas reuniões as inovações desfiguradoras da beleza simples do Evangelho; ainda aí, contudo, nesses primeiros séculos que sucederam à implantação da doutrina de Jesus, destinava a exercer tão acentuada influência na legislação de todos os povos, não se conhecia, em absoluto, a hegemonia da Igreja de Roma entre as outras congêneres. Somente no princípio do século VII a presunção dos prelados romanos encontrou guarida no famigerado imperador Focas, que outorgou a Bonifácio a primazia injustificável de bispo universal. Consumada essa medida, que facilitava ao orgulho e ao egoísmo toda sua nociva expansibilidade, tem-se levado a efeito, até hoje, os maiores atentados, que culminaram, em 1870, na declaração da infalibilidade papal.


Baldassarre Cossa ou João XXIII (c.1370-1418) foi um dos antipapas na época de um dos cismas da Igreja latina. Entre os séculos XIV e XV, a chefia da religião era disputada por papas em Roma, Avignon (no Sul da França) e Pisa (na Itália). Cossa foi deposto do papado de Roma em 1415. Em 1958, o cardeal Angelo Giuseppe Roncalli tomou para si o nome "João XXIII" ao ser eleito para o papado. O fato confirma que, para a Igreja, tanto um papa quanto uma doutrina ou texto podem ser considerados corretos ou repulsivos através de uma "penada" (assinatura em um documento, a exemplo da bula papal) e não pela real Vontade Divina.

INOVAÇÕES E DOGMAS ROMANOS

A doutrina de Jesus, concentrando-se à força na cidade dos Césares, aí permaneceu como encarcerada pelo poder humano e, passando por consecutivas reformas, perdeu a simplicidade encantadora das suas origens, transformando-se num edifício de pomposas exterioridades. Após a instituição do culto dos santos, surgiram imediatamente os primeiros ensaios de altares e paramentos para as cerimônias eclesiásticas, medidas aventadas pelos pagãos convertidos, os quais, constantemente, foram adaptando a Igreja a todos os sistemas religiosos do passado. O dogma da trindade é uma adaptação da Trimúrti da antiguidade oriental, que reunia nas doutrinas do bramanismo os três deuses - Brama, Vishnu e Siva. É verdade que as coisas inacessíveis ainda à vossa compreensão e que constituem os mistérios celestes, só vos podem ser transmitidas em suas expressões simbólicas; mas, o Catolicismo não pode aproveitar-se desse argumento para impor-se como única doutrina infalível e soberana. Ele era uma escola religiosa, como qualquer outra que busque nortear os homens para o bem e para Deus [...].

A história do papado é a do desvirtuamento dos princípios do Cristianismo, porque, pouco a pouco, o Evangelho quase desapareceu sob as suas despóticas inovações. Criaram os pontífices o latim nos rituais, o culto das imagens, a canonização, a confissão auricular, a adoração da hóstia, o celibato sacerdotal e, atualmente, noventa por cento das instituições são de origem humaníssima, fora de quaisquer características divinas.

[XAVIER, Emmanuel: dissertações mediúnica, p.32-3]

A transformação da Igreja do Cristo transparece a impressão de que o Evangelho não é mais dos humildes:

AS PRETENSÕES ROMANAS

Perdido o cetro da sua hegemonia na antiguidade, o espírito de supremacia perdurou, entretanto, na grande cidade, outrora teatro de todos os aviltamentos e corrupções da Humanidade. Foi dessa ânsia, de operar um retrospecto da História, que nasceu provavelmente o desejo de o bispo romano arvorar-se em chefe do Cristianismo; o que Roma perdera, com o progresso e com a expansão dos povos, reaveria nos domínios das coisas espirituais.

E assim aconteceu.

O Vaticano, porém, não soube senão produzir obras de caráter exclusivamente material, tornando-se potência de poder e autoridade temporais. [...] tem o seu império na Terra, que ainda não é o reino de Jesus. O seu fastígio, as suas suntuosas basílicas, as suas pomposas solenidades recordam o politeísmo e as dissipações da sociedade romana e, quando o sumo-pontífice aparece em vossos dias na sédia gestatória, é o retrato dos cônsules do antigo senado quando saíam a público, precedidos de litores. O símile é perfeito.

[XAVIER, pp. 33-4]

A Espiritualidade Maior, já no século I, através de um dos seus grandes médiuns (João, o Evangelista), previu o ápice da grande queda da Igreja Romana na consolidação do poder e da infalibilidade papal (semelhante aos antigos imperadores romanos, que portavam o título de "Augusto", para indicar sua natureza divina e incontestável a ser adorada pelos servos). 

Os chefes da Igreja bem longe estavam de serem iguais ao Cristo. Tais grandes faltas eclesiásticas eram a Besta descrita no Livro do Apocalipse, sobre a qual a própria Igreja, sem o devido autoconhecimento, alertava os fiéis.


IDENTIFICAÇÃO DA BESTA APOCALÍPTICA

Reza o Apocalipse que a besta poderia dizer grandezas e blasfêmias por 42 meses, acrescentando que o seu número era o 666 (Apoc. XIII, 5 e 18). Examinando-se a importância dos símbolos naquela época e seguindo o rumo certo das interpretações, podemos tomar cada mês como sendo de 30 anos, em vez de 30 dias, obtendo, desse modo, um período de 1260 anos comuns, justamente o período compreendido entre 610 e 1870, da nossa era, quando o Papado se consolidava, após o seu surgimento, com o imperador Focas, em 607, e o decreto da infalibilidade papal com Pio IX, em 1870, que assinalou a decadência e a ausência de autoridade do Vaticano, em face da evolução científica, filosófica e religiosa da Humanidade.

Quanto ao número 666, sem nos referirmos às interpretações com 
os números gregos, em seus valores, devemos recorrer aos algarismos romanos, em sua significação, por serem mais divulgados e conhecidos, explicando que é o Sumo-Pontífice da igreja romana quem usa os títulos de "VICARIVS GENERALIS DEI IN TERRIS", "VICARIVS FILII DEI" e "DVX CLERI" que significam "Vigário-Geral de Deus na Terra", "Vigário do Filho de Deus" e "Príncipe do Clero". Bastará ao estudioso um pequeno jogo de paciência, somando os algarismos romanos encontrados em cada titulo papal a fim de encontrar a mesma equação de 666, em cada um deles.

Vê-se, pois, que o Apocalipse de João tem singular importância para os destinos da Humanidade terrestre.


[XAVIER, Francisco Cândido (psicografia) e EMMANUEL (Espírito). A caminho da luz. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 1996, 22a ed., pp. 128-9].

Parte do Tríptico de São João Batista e São João Evangelista (1479), de Hans Memling. Algumas visões mediúnicas do Evangelista profetizaram acontecimentos futuros através de metáforas ou alegorias.

Mais Desvios

No Concílio de Cartago, em 417, a Igreja condenou o pelagianismo (doutrina de Pelágio, que afirmava que o homem pode se salvar através de bons pensamentos e atos: uma releitura da filosofia clássica). Em contrapartida, promoveu-se a doutrina patrística, apoiada por Agostinho (o homem depende da predestinação e da graça divina, e não apenas de si: uma tentativa de conciliar razão e fé).


Gravura calvinista do séc. XVII de Pelágio (c.354–c.440). 
Clérigo nascido nas Ilhas Britânicas ou na Bretanha (costa do Noroeste da França atual). O pelagianismo cristão parece ter se baseado, ao menos em parte, em filosofias pagãs gregas como as de Sócrates e Platão.

Somente com a filosofia patrística (referência aos “pais ou primeiros padres da Igreja”, a exemplo de João e Paulo), tentando conciliar o saber dos gregos e romanos, seria possível convencer os pagãos da nova verdade, para evangelizá-los. Apresentaram ideias judaico-cristãs desconhecidas aos filósofos gentios como o pecado original, a Santíssima Trindade e a ressurreição dos mortos no Juízo Final. As verdades de Deus ou sobrenaturais, reveladas através da Bíblia ou dos santos, eram dogmas: irrefutáveis ou inquestionáveis.

A possibilidade e impossibilidade de conciliar fé e razão é a principal característica do pensamento cristão dessa época. O questionamento clássico não seria mais tolerado.

O Único Verbo Válido

Após a crucificação de Jesus Cristo, diversos textos, ou relatos orais, que continham passagens da vida do Mestre, e demais orientações da Doutrina, circulavam entre as primeiras comunidades cristãs. Como revelou Lucas ao seu discípulo, Teófilo, no trecho que introduz o seu Evangelho:

Muitos já se dedicaram a elaborar um relato dos fatos que se cumpriram entre nós, conforme nos foram transmitidos por aqueles que desde o início foram testemunhas oculares e servos da palavra. Eu mesmo investiguei tudo cuidadosamente, desde o começo, e decidi escrever-te um relato ordenado, ó excelentíssimo Teófilo, para que tenhas a certeza das coisas que te foram ensinadas [Lucas 1:1-4].

Porém, a partir do século V, a maior parte dessas obras foi classificada de livros apócrifos ("ocultos", em grego), gnósticos (de gnósis, sabedoria) ou heréticos (de hairesis, heresia, que no sentido original significa "escolha" ou "opção").


O ex-judeu publicano Zaqueu, também chamado de Matias (nome cristão), teria encontrado Jesus pela primeira vez em Jericó, quando aceitou a doutrina do Cristo (ver Lucas, 19:1-10). Após o suicídio de Judas Iscariote, Zaqueu-Matias foi escolhido para o posto de 13º Apóstolo. A ele é atribuído a autoria de um respeitável livro apócrifo: o Evangelho de Matias.

Alguns outros textos taxados pela Igreja de apócrifos ou heréticos, mas que merecem atenção por importantes e sérias informações que não constam na literatura canônica (a Bíblia) são o Livro de Tomé, o Atleta; o Apócrifo de Tiago e o Evangelho de Valentim.

Tais textos registraram, em muitos trechos, visões e interpretações diferentes dos evangelhos aceitos pela Igreja Latina, estes chamados de "canônicos" (do grego canon, padrão). Os quatro evangelhos do Novo Testamento, como todos os outros livros da Bíblia católica, foram selecionados (dentre diversos textos antigos em hebraico e grego), traduzidos para o latim e organizados, por volta de 405, pelo padre e estudioso Eusebius Sophronius Hieronymus ou Jerônimo de Strídon (c.347-420).


São Jerônimo Escrevendo (c.1605-06), de Caravaggio.

Com o passar dos séculos, os interesses daqueles que "dominavam a palavra de Jesus Cristo" distanciaram os ensinamentos do Mestre de Nazaré com prática cristã.

Certas palavras ditas por Jesus soam estranhas, parecendo contraditórias com sua bondade e sua inalterável benevolência para com todos. Os incrédulos não perderam a oportunidade de fazer disto uma arma, dizendo que Jesus se contradizia. Um fato irrecusável é que sua doutrina tem por pedra angular, por base principal, a lei de amor e de caridade; não poderia destruir de um lado o que tinha estabelecido do outro, de onde é preciso tirar esta conseqüência rigorosa: que certos ensinamentos estão em contradição com aquele princípio básico porque as palavras que se Lhe atribuíram foram mal reproduzidas, mal compreendidas, ou nem são d'Ele.

[KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, Cap. XIV, §6]

Exemplos da herança grega e judaica reinterpretada pela teologia cristã oficial foram os rituais fúnebres:
Considerando a morte como "aniversário" da vida eterna e a ressurreição do corpo ("Templo do Espírito Santo" e semente para uma nova forma) no Juízo Final, o canto de salmos e hinos em ocasiões de morte passaram a se constituir cristiana traditio (tradição cristã), a partir de São Jerônimo (séc.V), diferenciando-se e opondo-se à noção helenística da imortalidade da alma, assim como da prática judaica da lamentação pelos mortos.
Fonte: http://repertoriosinfonico.blogspot.com.br/2007/06/mozart-w-requiem-em-r-menor-k-626.html

O CÂNONE (MAL) INTERPRETADO

O jornalista e autor Reinaldo José Lopes defende a ideia de que os textos originais do Evangelhos e outros do Novo Testamento não foram alterados ou manipulados literalmente (na escrita), porém apenas na interpretação da leitura. 


... os mais antigos fragmentos em grego desses livros [do Novo Testamento] que chegaram até nós são do começo do século 2º d.C. — cerca de um século, portanto, depois da morte de Jesus. Mas textos maiores só aparecem no século 3º d.C. O consenso entre os historiadores, no entanto, é que a maior parte do Novo Testamento foi escrita bem antes, entre 65 d.C. e 100 d.C. Mais uma vez, existem variantes? Sim, centenas de milhares, mas a grande maioria delas não tem grande significado. [...] Outros trechos que podem ter sido alterados por causa de disputas teológicas envolvem interpretações adocionistas, ou seja, a ideia de que Jesus teria sido apenas adotado por Deus, e não seria seu Filho desde sempre. No geral, porém, vale o mesmo que dizemos sobre o Antigo Testamento: quando comparamos todos os manuscritos que chegaram até nós, não há sinais de manipulações de larga escala dos textos.

O importante aqui, eu acho, é pensar no contexto e na maneira como funcionavam as tradições religiosas na Antiguidade. Os textos que acabaram compondo o cânone da Bíblia já circulavam e eram venerados havia séculos quando o cristianismo se consolidou. Eram lidos, comentados, estudados e muito bem conhecidos. Alterá-los totalmente provocaria muitas brigas e não serviria a grandes propósitos. O mais lógico era aceitá-los mais ou menos como eram e investir em interpretações que casassem bem com a teologia cristã nascente.

o que a Bíblia das igrejas protestantes inclui em seu Antigo Testamento é um conjunto de livros exclusivamente traduzidos do hebraico para as línguas modernas. São os mesmos livros incluídos pelos judeus atuais em seu Tanakh desde mais ou menos o ano 100 d.C. As Bíblias católicas e ortodoxas incluem ainda outros livros, como Judite, Sabedoria e Eclesiástico, que foram traduzidos do grego e a respeito dos quais se acreditava que tinham sido escritos originalmente em grego e/ou nunca teriam feito parte do cânone de qualquer grupo judaico.

... na época de Jesus o cânone judaico ainda estava “semiaberto”, e ao menos alguns grupos de judeus parecem, sim, ter considerado que tais livros eram canônicos. Trechos do Eclesiástico, por exemplo, foram achados entre os Manuscritos do Mar Morto, e em hebraico. A mesma coisa vale para o livro de Tobias – trechos em hebraico e aramaico também constam da “coleção” do mar Morto [achados na Cisjordânia nos anos 1940 e 1950, remontam até o século 2º a.C., em alguns casos, e vão até o século 1º da Era Cristã, ou seja, têm cerca de 2.000 anos de idade. A maior parte desses manuscritos corresponde a trechos de quase todos os livros da Bíblia hebraica, ou Tanakh, como também é conhecida — só não há na coleção trechos do livro de Ester].


Fonte: http://darwinedeus.blogfolha.uol.com.br/2015/02/26/5-mitos-sobre-a-biblia-manipulada/

A Bíblia organizada e traduzida por Jerônimo, chamada de Vulgata ("popular", em latim), foi encomendada pelo papa Dâmaso I (séc. IV). Este chefe da Igreja, tentando por um fim aos cismas (divergências) entre as igrejas cristãs no Ocidente e Oriente, convocou os sínodos de Roma (de 368 e 369, que condenaram o apolinarianismo e o macedonianismo), e enviou legados ao 1º Concílio de Constantinopla (de 381, que "determinou" a natureza de Cristo e ratificou o posto de herege ao arianismo).

Essas foram umas das primeiras determinações enérgicas da Igreja para manter a "fé cristã" (que entendemos por poder teológico e político romano) unida. As condenações, que classificaram tudo que não comungava com Roma de "herético", abriram caminho para a primeira separação oficial no cristianismo: após o Concílio de Éfeso (431), surgiu a Igreja Assíria, a primeira instituição religiosa cristã desligada da administração romana. A intolerância romana geraria mais cisões ao longo dos séculos.

O lado positivo de ser considerado "herético" está no fato dos textos apócrifos não terem sido manipulados ou distorcidos pelas compilações canônicas. Alguns livros (não todos) chegaram até nós contendo valiosas informações sobre a pureza da doutrina deixada por Cristo.


O ARIANISMO:
O primeiro grande concorrente dentro do cristianismo latino


Antigo retrato de Arius ou Ário de Alexandria (c.280-336) em afresco.

No primitivo seio cristão, havia movimentos gnósticos, a exemplo de alguns "cristãos helenistas", ditos assim por divulgar o cristianismo em terras dominadas pelo helenismo (tal convívio teria colaborado na influência da filosofia grega sobre a teologia cristã). Antes do século III, diversas pessoas consideradas cristãs seguiam outras doutrinas ou outros pontos de vista sobre os ensinamentos do Cristo, adoravam outros símbolos (no lugar da cruz, por exemplo, que só surgiu no século IV com o imperador Constantino), faziam outros tipos de preces, enfim, costumes diferentes, ditos pagãos ou hereges, do que hoje são considerados práticas católicas, ortodoxas, protestantes etc.

Entre os gnósticos estava Ário de Alexandria, presbítero, de etnia berbere, possível conhecedor do helenismo, da visões transcendentes dos antigos egípcios e de outras crenças e filosofias orientais. Possivelmente um homem menos preconceituoso em relação às crenças ditas pagãs.

Alexandria do Egito, situada no fértil Delta do Nilo, substituiu Atenas como "sede do Saber" do Velho Mundo. As hordas do macedônio Alexandre, o Grande (que deu o próprio nome à cidade e a outras homônimas), trouxeram das longínquas terras do Oriente não apenas riquezas e especiarias materiais, mas também intelectuais e espirituais, as quais Ário pode ter usufruído para alargar sua visão teológica, além do que era pregado pela Roma cristianizada.

Quiçá teve conhecimento do zoroastrismo persa, de religiões da Índia que creem na reencarnação, a exemplo do conceito de "avatar" do hinduísmo (que Ário pode ter comparado, por algum tempo, com a pessoa de Jesus Cristo). Talvez também tivesse acesso às obras sobreviventes da extinta Biblioteca de Alexandria, as quais forneceram diferentes visões da espiritualidade.

O arianismo negava Jesus Cristo como sendo, ao mesmo tempo, o Logos ou Verbo (Deus, o Criador) e ser humano. Porém, sem desmerecê-Lo (longe disso, o exaltou como "homem perfeito", principal representante do Logos).

O movimentado porto de Alexandria transportou o pensamento de Ário a vários locais. Logo difundiu-se pelo Império, pois foi bem aceito por muitos cristãos. Um dos filhos de Constantino I, Constâncio II (317-361), e que subiu ao trono com os irmãos após a morte do pai (reinou a parte oriental), era arianista, apesar do 1º Concílio de Niceia (em 325) ter considerado o arianismo herético. Outro grande monarca ariano, e que depois se converteu a Igreja Latina, foi Clóvis I (c.466-c.511), rei dos francos (dito fundador da nação francesa por unificar as tribos da antiga Gália)

A FUNDAÇÃO DO CÂNONE OU "CRISTIANISMO OFICIAL"

Para combater as 'heresias", a Igreja, no século III, estabeleceu três estruturas básicas:

- Os cânones, sobretudo quanto as "sagrada escrituras": somente a versão Vulgata passou a ser aceita, uma visão de Deus de raízes hebraicas;

- Instituiu a classe eclesiástica dos bispos: o sacro magistério ou "sucessores dos Apóstolos", os intérpretes oficiais do cristianismo, defensores da ortodoxia da Igreja. 

A concordância entre os fiéis e um bispo garantia a unidade religiosa local, a concordância entre os bispos garantia a unidade religiosa universal;

- A criação do Credo: declaração de fé ou resumo das crenças cristãs.

Quando o cristianismo começou a mudar ao favor dos interesses mundanos:
Ícone do monastério grego Mégalo Metéoron representando o 1º Concílio Ecumênico de Niceia (325 d.C.), no qual Ário (na parte central e mais baixa do ícone) foi condenado. Ário, que defendia dentre outros aspectos a distinção entre Jesus e Deus (contra a ideia da Santíssima Trindade), foi um dos primeiros hereges da Igreja protegida pelo imperador romano Constantino, o Grande.

O 2º Concílio de Constantinopla (553 d.C.) declarou herético o conceito reencarnacionista ou da "transmigração da alma" (já que a palavra "reencarnação" só surgiu no século XIX com o Espiritismo). Curiosamente, os primeiros padres da Igreja, como Clemente de Alexandria, Tertuliano, Orígenes e até São Jerônimo, semelhante a alguns antigos gregos (como Sócrates e Platão) e celtas, acreditavam ter vivido antes e que voltariam a viver.

A REENCARNAÇÃO E A IGREJA

Orígenes, sábio cristão e mestre da igreja, ensinava que "todas as almas chegam a este mundo fortalecidas pelas vitórias ou debilitadas pelas derrotas de uma vida pregressa.

O seu lugar neste planeta é determinado por seus méritos ou deméritos do passado". Essa assertiva do sábio Orígenes traduz sua ampla confissão da sua crença viva na reencarnação da alma.

São Clemente, de Alexandria, era adepto fervoroso da teoria da reencarnação e isso pode ser facilmente encontrado em muitos de seus escritos.

Em favor da teoria reencarnacionista, São Gregório, Bispo de Nissa, afirmou que "a alma precisa purificar-se e isso não acontecendo durante a vida na Terra, deve ser realizado em outras vidas futuras".

Santo Agostinho, no seu livro Confissões, chegou a interpelar a si mesmo: "não vivi em outro corpo antes de entrar no ventre de minha mãe?" Eis aqui provada, por sua própria confissão, a crença de Santo Agostinho na sua própria reencarnação.

Somente em 553, durante o Concílio de Constantinopla, graças às artimanhas da imperatriz Theodora, que exerceu forte influência em seu esposo - o Imperador Justiniano -, é que a reencarnação tornou-se heresia e seus adeptos passaram a ser perseguidos. Apesar disso e das perseguições que se seguiram aos então considerados "hereges", muitos doutores da igreja continuaram acreditando e divulgando os legítimos princípios da reencarnação. Em nossos dias, no seio da igreja contemporânea, cultos sacerdotes, em caráter sigiloso, continuam aceitando a tese reencarnacionista.


Fonte: http://www.ippb.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3869&catid=81

PRINCÍPIOS CRISTÃOS ESPÍRITAS, COMO A REENCARNAÇÃO, FORAM INTRODUZIDOS POR SÓCRATES E PLATÃO


... As grandes ideias jamais irrompem de súbito. As que assentam sobre a verdade sempre têm precursores que lhes preparam parcialmente os caminhos. Depois, chegando o tempo, envia Deus um homem com a missão de resumir, coordenar e completar os elementos esparsos, de reuni-los em corpo de doutrina.

[...]

[...] ele [Sócrates] foi acusado, pelos fariseus do seu tempo, visto que sempre os houve em todas as épocas, por proclamar o dogma da unidade de Deus, da imortalidade da alma e da vida futura.

[...]

[...] Aos que considerarem esse paralelo uma profanação e pretendam que não pode haver paridade entre a doutrina de um pagão e a do Cristo, diremos que não era pagã a de Sócrates, pois que objetivava combater o paganismo [...].

[...]

I. O homem é uma alma encarnada. Antes da sua encarnação, existia unida aos tipos primordiais das ideias do verdadeiro, do bem e do belo; separa-se deles, encarnando, e, recordando o seu passado, é mais ou menos atormentada pelo desejo de voltar a ele.

Não se pode enunciar mais claramente a distinção e independência entre o princípio inteligente e o princípio material. É, além disso, a doutrina da preexistência da alma; da vaga intuição que ela guarda de um outro mundo, a que aspira; da sua sobrevivência ao corpo; da sua saída do mundo espiritual, para encarnar, e da sua volta a esse mesmo mundo, após a morte.

[...]

[...] Não são as almas dos bons; são, porém, as dos maus, que se veem forçadas a vagar por esses lugares, onde arrastam consigo a pena da primeira vida que tiveram e onde continuam a vagar até que os apetites inerentes à forma material de que se revestiram as reconduzam a um corpo. Então, sem dúvida, retomam os mesmos costumes que durante a primeira vida constituíam objeto de suas predileções.

Não somente o princípio da reencarnação se acha aí claramente expresso, mas também o estado das almas que se mantêm sob o jugo da matéria é descrito qual o mostra o Espiritismo nas evocações. Mais ainda: no tópico acima se diz que a reencarnação num corpo material é consequência da impureza da alma, enquanto as almas purificadas se encontram isentas de reencarnar. Outra coisa não diz o Espiritismo, acrescentando apenas que a alma, que boas resoluções tomou na erraticidade e que possui conhecimentos adquiridos, traz, ao renascer, menos defeitos, mais virtudes e ideias intuitivas do que tinha na sua existência precedente. Assim, cada existência lhe marca um progresso intelectual e moral.

KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro. Brasília: Federação Espírita Brasileira, Introdução, IV – Sócrates e Platão, precursores da
ideia cristã e do Espiritismo, Resumo da Doutrina de Sócrates e Platão, 131ª ed., 2013, pp.32 e 34.

OS JUDEUS ANTES E DA ÉPOCA DE JESUS CRIAM EM ALGO PRÓXIMO À REENCARNAÇÃO CHAMADO RESSURREIÇÃO

O princípio reencarnacionista na sociedade judaica não era exatamente o mesmo do esclarecido pela Codificação Kardequiana, porém a noção do renascimento dos homens já estava presente. A Igreja Latina reinterpretou esse fenômeno da Lei Natural ou Divina, através do simbólico renascimento através do rito cristão do Batismo: quando uma pessoa "morre" para paganismo, judaísmo, islamismo etc. e "renasce" para cristianismo. Como João Batista tinha o hábito de batizar pessoas moralmente arrependidas nas águas do rio Jordão (em verdade, uma espécie de ablução judaica, não uma conversão cristã, pois o cristianismo ainda não existia), a Igreja utilizou a citação da palavra "água" nas elucidações de Jesus para Nicodemos, no Evangelho de João, para criar o sacramento do batismo, e dar assim um significado apropriado aos seus interesses ideológicos, distinto do significado original.


Seus discípulos então o interrogaram desta forma: “Por que dizem os escribas ser preciso que antes volte Elias?” — Jesus lhes respondeu: “É verdade que Elias há de vir e restabelecer todas as coisas, mas Eu vos declaro que Elias já veio e eles não o conheceram e o trataram como lhes aprouve. É assim que farão sofrer o Filho do Homem.” — Então, seus discípulos compreenderam que fora de João Batista que Ele falara. (Mateus, 17:10 a 13; Marcos, 9:11 a 13.)


Elias e João Batista eram a mesma pessoa (Espírito) em existências e épocas diferentes, ou seja, Elias foi uma das vidas pretéritas (encarnação passada) do Batista. A desencarnação (morte física) deste através da decapitação atendeu a Lei de Causa e Efeito descrita pela Doutrina Espírita. O hinduísmo chama tal princípio de Karma, porém a interpretação da Lei ou fenômeno não é a mesma (para melhores elucidações, vide as obras de Allan Kardec: Reencarnação: O Livro dos Espíritos - Cap. IV - Da Pluralidade das Existências / A Gênese - Cap. XI - 21 / Obras Póstumas - Cap. "As Expiações Coletivas" / O Evangelho Segundo o Espiritismo - Cap. IX. Lei de Causa e Efeito: O Livro dos Espíritos - Questões: 192-a, 921, 999, 1.002, 1.009 - e).


Jesus lhe respondeu: “Em verdade, em verdade, digo-te: Ninguém pode ver o Reino de Deus se não nascer de novo.” Disse-lhe Nicodemos: “Como pode nascer um homem já velho? Pode tornar a entrar no ventre de sua mãe, para nascer segunda vez?” Retorquiu-lhe Jesus: “Em verdade, em verdade, digo-te: Se um homem não renasce da água e do Espírito, não pode entrar no Reino de Deus. — O que é nascido da carne é carne e o que é nascido do Espírito é Espírito. — Não te admires de que Eu te haja dito ser preciso que nasças de novo. — O Espírito sopra onde quer e ouves a sua voz, mas não sabes donde vem ele, nem para onde vai; o mesmo se dá com todo homem que é nascido do Espírito.”

Respondeu-lhe Nicodemos: “Como pode isso fazer-se?” — Jesus lhe observou: “Pois quê! és mestre em Israel e ignoras estas coisas? Digo-te em verdade, em verdade, que não dizemos senão o que sabemos e que não damos testemunho, senão do que temos visto. Entretanto, não aceitas o nosso testemunho. Mas se não me credes quando vos falo das coisas da Terra, como me crereis quando vos fale das coisas do céu?” (João, 3:1 a 12.)



Ilustração sobre a conversa noturna, relatada no Evangelho de João, entre Nicodemos, amigável judeu fariseu membro do Sinédrio, e Jesus de Nazaré.

[...]


4. A reencarnação fazia parte dos dogmas dos judeus, sob o nome de ressurreição. Só os saduceus, cuja crença era a de que tudo acaba com a morte, não acreditavam nisso. As ideias dos judeus sobre esse ponto, como sobre muitos outros, não eram claramente definidas, porque apenas tinham vagas e incompletas noções acerca da alma e da sua ligação com o corpo. Criam eles que um homem que vivera podia reviver, sem saberem precisamente de que maneira o fato poderia dar-se. Designavam pelo termo ressurreição o que o Espiritismo, mais judiciosamente, chama reencarnação. Com efeito, a ressurreição dá ideia de voltar à vida o corpo que já está morto, o que a Ciência demonstra ser materialmente impossível, sobretudo quando os elementos desse corpo já se acham desde muito tempo dispersos e absorvidos. A reencarnação é a volta da alma ou Espírito à vida corpórea, mas em outro corpo especialmente formado para ele e que nada tem de comum com o antigo. A palavra ressurreição podia assim aplicar-se a Lázaro, mas não a Elias, nem aos outros profetas. Se, portanto, segundo a crença deles, João Batista era Elias, o corpo de João não podia ser o de Elias, pois que João fora visto criança e seus pais eram conhecidos. João, pois, podia ser Elias reencarnado, porém, não ressuscitado.


[...]


6. A ideia de que João Batista era Elias e de que os profetas podiam reviver na Terra se nos depara em muitas passagens dos Evangelhos, notadamente nas acima reproduzidas (itens 1, 2, 3). Se fosse errônea essa crença, Jesus não houvera deixado de a combater, como combateu tantas outras. Longe disso, Ele a sanciona com toda a sua autoridade e a põe por princípio e como condição necessária quando diz: “Ninguém pode ver o Reino de Deus se não nascer de novo.” E insiste, acrescentando: “Não te admires de que Eu te haja dito ser preciso nasças de novo.”

7. Estas palavras: Se um homem não renasce da água e do Espírito foram interpretadas no sentido da regeneração pela água do batismo. O texto primitivo, porém, rezava simplesmente: não renasce da água e do Espírito, ao passo que nalgumas traduções as palavras — do Espírito — foram substituídas pelas seguintes: do Santo Espírito, o que já não corresponde ao mesmo pensamento. Esse ponto capital ressalta dos primeiros comentários a que os Evangelhos deram lugar, como se comprovará um dia, sem equívoco possível.*


*Nota de Allan Kardec: A tradução de Osterwald está conforme o texto primitivo. Diz: “Não renasce da água e do Espírito”; a de Sacy diz: do Santo Espírito; a de Lamennais: do Espírito Santo.


À nota de Allan Kardec, podemos hoje acrescentar que as modernas traduções já restituíram o texto primitivo, pois que só imprimem “Espírito”, e não Espírito Santo. Examinamos a tradução brasileira, a inglesa, a em Esperanto, a de Ferreira de Almeida, e em todas elas está somente “Espírito”.

Além dessas modernas, encontramos a confirmação numa latina de Theodoro de Beza, de 1642, que diz:


“...genitus ex aqua et Spiritu...” “...et quod genitum est ex Spiritu, spiritus est.”

É fora de dúvida que a palavra “Santo” foi interpolada, como diz Kardec.

8. Para se apanhar o verdadeiro sentido dessas palavras, cumpre também se atente na significação do termo água que ali não fora empregado na acepção que lhe é própria.

Muito imperfeitos eram os conhecimentos dos antigos sobre as ciências físicas. Eles acreditavam que a Terra saíra das águas e, por isso, consideravam a água como elemento gerador absoluto. Assim é que em Gênesis, capítulo 1, se lê: “O Espírito de Deus era levado sobre as águas; flutuava sobre as águas; Que o firmamento seja feito no meio das águas; Que as águas que estão debaixo do céu se reúnam em um só lugar e que apareça o elemento árido; Que as águas produzam animais vivos que nadem na água e pássaros que voem sobre a terra e sob o firmamento.”

Segundo essa crença, a água se tornara o símbolo da natureza material, como o Espírito era o da natureza inteligente. Estas palavras: “Se o homem não renasce da água e do Espírito, ou em água e em Espírito”, significam pois: “Se o homem não renasce com seu corpo e sua alma.” É nesse sentido que a princípio as compreenderam.

Tal interpretação se justifica, aliás, por estas outras palavras: O que é nascido da carne é carne e o que é nascido do Espírito é Espírito. Jesus estabelece aí uma distinção positiva entre o Espírito e o corpo. O que é nascido da carne é carne indica claramente que só o corpo procede do corpo e que o Espírito independe deste.

9. O Espírito sopra onde quer; ouves-lhe a voz, mas não sabes nem donde ele vem, nem para onde vai: pode-se entender que se trata do Espírito de Deus, que dá vida a quem ele quer, ou da alma do homem. Nesta última acepção — “não sabes donde ele vem, nem para onde vai” — significa que ninguém sabe o que foi, nem o que será o Espírito. Se o Espírito, ou alma, fosse criado ao mesmo tempo que o corpo, saber-se-ia donde ele veio, pois que se lhe conheceria o começo. Como quer que seja, essa passagem consagra o princípio da preexistência da alma e, por conseguinte, o da pluralidade das existências.

10. Ora, desde o tempo de João Batista até o presente, o Reino dos Céus é tomado pela violência e são os violentos que o arrebatam; pois que assim o profetizaram todos os profetas até João, e também a lei. Se quiserdes compreender o que vos digo, ele mesmo é o Elias que há de vir. Ouça-o aquele que tiver ouvidos de ouvir. (Mateus, 11:12 a 15.)

11. Se o princípio da reencarnação, conforme se acha expresso em João, podia, a rigor, ser interpretado em sentido puramente místico, o mesmo já não acontece com esta passagem de Mateus, que não permite equívoco: ele mesmo é o Elias que há de vir. Não há aí figura, nem alegoria: é uma afirmação positiva. — “Desde o tempo de João Batista até o presente o Reino dos Céus é tomado pela violência.” Que significam essas palavras, uma vez que João Batista ainda vivia naquele momento? Jesus as explica, dizendo: “Se quiserdes compreender o que digo, ele mesmo é o Elias que há de vir.” Ora, sendo João o próprio Elias, Jesus alude à época em que João vivia com o nome de Elias. “Até o presente o Reino dos Céus é tomado pela violência”: outra alusão à violência da lei moisaica, que ordenava o extermínio dos infiéis, para que os demais ganhassem a Terra Prometida, Paraíso dos Hebreus, ao passo que, segundo a nova lei, o céu se ganha pela caridade e pela brandura.

E acrescentou: Ouça aquele que tiver ouvidos de ouvir. Essas palavras, que Jesus tanto repetiu, claramente dizem que nem todos estavam em condições de compreender certas verdades.

12. Aqueles do vosso povo a quem a morte foi dada viverão de novo; aqueles que estavam mortos em meio a mim ressuscitarão. Despertai do vosso sono e entoai louvores a Deus, vós que habitais no pó; porque o orvalho que cai sobre vós é um orvalho de luz e porque arruinareis a Terra e o reino dos gigantes. (Isaías, 26:19.)

13. É também muito explícita esta passagem de Isaías: “Aqueles do vosso povo a quem a morte foi dada viverão de novo.” Se o profeta houvera querido falar da vida espiritual, se houvera pretendido dizer que aqueles que tinham sido executados não estavam mortos em Espírito, teria dito: ainda vivem, e não: viverão de novo. No sentido espiritual, essas palavras seriam um contrassenso, pois que implicariam uma interrupção na vida da alma. No sentido de regeneração moral, seriam a negação das penas eternas, pois que estabelecem, em princípio, que todos os que estão mortos reviverão.

14. Mas quando o homem há morrido uma vez, quando seu corpo, separado de seu espírito, foi consumido, que é feito dele? — Tendo morrido uma vez, poderia o homem

reviver de novo? Nesta guerra em que me acho todos os dias da minha vida, espero que chegue a minha mutação. (Jó, 14:10 e 14. Tradução de Lemaistre de Sacy.)

Quando o homem morre, perde toda a sua força, expira. Depois, onde está ele? — Se o homem morre, viverá de novo? Esperarei todos os dias de meu combate, até que venha alguma mutação? (Idem. Tradução protestante de Osterwald.)

Quando o homem está morto, vive sempre; acabando os dias da minha existência terrestre, esperarei, porquanto a ela voltarei de novo. (Idem. Versão da Igreja grega.)

15. Nessas três versões, o princípio da pluralidade das existências se acha claramente expresso. Ninguém poderá supor que Jó haja querido falar da regeneração pela água do batismo, que ele decerto não conhecia. “Tendo o homem morrido uma vez, poderia reviver de novo?” A ideia de morrer uma vez, e de reviver implica a de morrer e reviver muitas vezes. A versão da Igreja grega ainda é mais explícita, se é que isso é possível: “Acabando os dias da minha existência terrena, esperarei, porquanto a ela voltarei”, ou, voltarei à existência terrestre. Isso é tão claro, como se alguém dissesse: “Saio de minha casa, mas a ela tornarei.”

“Nesta guerra em que me encontro todos os dias de minha vida, espero que se dê a minha mutação.” Jó, evidentemente, pretendeu referir-se à luta que sustentava contra as misérias da vida. Espera a sua mutação, isto é, resigna-se. Na versão grega, esperarei parece aplicar-se, preferentemente, a uma nova existência: “Quando a minha existência estiver acabada, esperarei, porquanto a ela voltarei.” Jó como que se coloca, após a morte, no intervalo que separa uma existência de outra e diz que lá aguardará o momento de voltar.

16. Não há, pois, duvidar de que, sob o nome de ressurreição, o princípio da reencarnação era ponto de uma das crenças fundamentais dos judeus, ponto que Jesus e os profetas confirmaram de modo formal; donde se segue que negar a reencarnação é negar as palavras do Cristo. Um dia, porém, suas palavras, quando forem meditadas sem ideias preconcebidas, reconhecer-se-ão autorizadas quanto a esse ponto, bem como em relação a muitos outros.

KARDEC, Allan. Idem. Cap. IV, Ninguém poderá ver o Reino de Deus se não nascer de novo, Ressurreição e reencarnação, pp.68 a 72, com modificação.

MAIS ESCLARECIMENTOS


ELIAS VOLTA COMO JOÃO BATISTA

Quando Jesus disse que Elias já teria vindo e que ninguém o reconheceu, muitos interpretam que João era inspirado por Elias e não que era o próprio profeta. Mas essa identificação dos dois personagens sendo a mesma pessoa mostra também um outro aspecto, a Lei de Causa e Efeito. Na figura de Elias, mesmo falando em nome de Deus, ele cometeu alguns excessos e violências em sua época. Posteriormente, o seu espírito veio na figura de João Batista para preparar o povo para receber as palavras do Messias. Entretanto, pelo fato de ter cometido os excessos em sua vida anterior, veio resgatar parte de seus débitos sofrendo a decapitação por ordem de Herodes, a pedido de Salomé, que o agradou numa apresentação de dança, manobrada ardilosamente pela sua mãe, Herodíades.

Note-se a analogia das circunstâncias: na ocasião em que era conhecido como Elias, enfrentou a rainha Jezabel, tendo-a vencido pelos poderes, matando os sacerdotes e suprimindo o culto ao deus Baal. Na segunda ocasião, já como João Batista, ele é morto por maquinação também de uma rainha.

O conceito de reencarnação fazia parte das crenças judaicas. Esse conhecimento dos judeus só foi ampliado no momento em que Jesus trouxe-lhes mais informações sobre o processo reencarnatório. No diálogo entre Nicodemos e o Mestre podemos observar a atenção dada ao assunto [...].

Como nota de esclarecimento, é preciso identificar o significado da palavra "água" no texto. O renascimento “de água” e “de espírito” é nada mais do que a retomada da experiência física, cuja constituição é eminentemente líquida [o embrião desenvolve-se no líquido amniótico da placenta, cerca de 75% do corpo humano é composto de água, os primeiros seres vivos surgiram nos oceanos etc. "Carne nasce da carne", os corpos físico-biológicos surgem, se reproduzem, de outros corpos físico-biológicos, através do material genético nas células reprodutivas]. Portanto, o renascer de água é reencarnar e o renascer de espírito é evoluir, progredir moralmente [através das reencarnações].

ERROS DE TRADUÇÃO: NEGLIGÊNCIA

O prof. Carlos Juliano Torres Pastorino (1910-1980), Docente do Colégio Pedro II e catedrático da Universidade Federal de Brasília, diplomado em Teologia e Filosofia pelo Colégio Internacional Santo Antônio Maria Zaccaria, em Roma, era um exímio latinista, helenista e poliglota. De acordo com os conhecimentos do Prof. Pastorino, freqüentemente são traduzidos por “ressuscitar” os verbos gregos egeírô (estar acordado, despertar) e anístêmi (tornar a ficar de pé, regressar), e que este último, encerra um sentido em geral negligenciado pelos tradutores: o de reencarnar. As Escrituras não falam em “ressurreição dos corpos” ou “da carne”, mas em anástasis ek ton nekrõn, ou seja, “ressurreição dos mortos”. De posse destes esclarecimentos oferecidos por uma autoridade linguística, torna-se relativamente fácil identificarmos os sentidos negligenciados propositadamente pelos tradutores modernos. A ressurreição ocorre com os mortos e não com os corpos.

Na Epístola aos Hebreus (11:35), onde se lê: “Mulheres receberam os seus mortos pela ressurreição”, vemos que são as “mulheres” e não os homens, pois elas é que podem gerar em seus ventres os corpos destinados à reencarnação, ao ressurgimento dos espíritos “mortos” no mundo físico.

Os gregos acreditavam na existência do Hades (lugar dos mortos), de onde as almas retornavam para a vida, denominando este fenômeno como “palingênese” (palinggenesia: novo nascimento). Assim como os gregos, os hebreus também acreditavam que as almas dos mortos voltavam à vida, que do Sheot elas retornavam ao mundo da matéria, conhecido como “anástasis” (do verbo anístêmi, composto de ana: ´para cima´, ´de novo´ ou ´para trás´; e ístêmr. ´estar de pé´. Ou seja: tornar a ficar de pé, regressar), expressão traduzida por “ressurreição”. Está escrito: “O Senhor é o que tira a vida e a dá: faz descer ao sheol e faz tornar a subir dele.” (1 Sm 2:6). Apesar de tentarem alterar o significado do texto, traduzindo inúmeras vezes “Sheol” por “sepultura”, para os mais atentos, se buscarmos a origem das palavras, veremos que a mensagem é clara quanto a afirmação: regressar do Sheol, regressar do mundo dos mortos.

A palavra Sheol é hebraica, e designa o lugar para onde iam todos após a morte: tanto os justos como os injustos, havendo, no entanto, nessa região dos mortos, uma divisão para os justos, e outra para os injustos, separados por um “abismo intransponível” (Lc 16.26). O lugar dos justos era de felicidade, prazer e segurança. Já o lugar dos ímpios era medonho, ignífero (onde há fogo), cheio de dores, sofrimentos, estando todos perfeitamente conscientes.

Em muitas das passagens bíblicas, as inúmeras referências ao Sheol possuem imperfeições na sua tradução. Certas versões em português traduzem a designação hebraica por sepultura e outros termos afins, como inferno (Dt 32.22; 2 Sm 22.6; Jó 11.8; 26.6; 5116.10), o que traz confusão. (Gn 37.35; Nm 16.30,33; Já 17.16;11.8; SI 30.3; 86.13;139.8; Pv 9.18; 15.24; Is 14.9; 38.18-32; Ez 31.15,17; Am 9.12).

A expressão grega “palinggenesia” (palingênese), segundo o Prof. Pastorino, era o termo técnico da reencarnação entre os gregos. No entanto, São Jerônimo, geralmente, o traduzia por regeneração.

Já a palavra “ressurreição” é a tradução da expressão grega “anastasis” originária do verbo “anistemi”, que significa tornar a ficar de pé, mas também “regressar”.

A palavra “reencarnação” não se encontra nas escrituras, mas na cultura judaico-cristã. Entre eles havia o conceito de ressurreição, que é justamente o que chamamos hoje de “reencarnação”.

O conceito reencarnacionista foi dissimulado nos textos bíblicos ao longo dos séculos, alterando-se com isso, o seu conteúdo. Referências do século II d.C., onde Orígenes, um dos pais da Igreja, comenta que: “Presentemente, é manifesto que grandes foram os desvios sofridos petas cópias, quer pelo descuido de certos escribas, quer pela audácia perversa de diversos corretores, quer pelas adições ou supressões arbitrárias.” Portanto, a intenção de distorcer o conteúdo bíblico já vem de longa data.

Se nos dedicarmos ao estudo profundo dos fatos, veremos que tudo é uma questão de resgate do verdadeiro sentido das palavras, que assumiram significados diversos no decorrer do tempo. Através da pesquisa etmológica, sem dúvida, chegaremos à verdade original dos textos.

Fonte, com adições: http://www.ippb.org.br/textos/especiais/editora-vivencia/elias-joao-batista-um-caso-de-reencarnacao

A intolerância romana aos outros conceitos cristãos:
Ao longo da Idade Média, muitas outras doutrinas foram consideradas heréticas ou gnósticas, como o priscilianismo, nestorianismo, donatismo, marcionismo, montanismo, maniqueísmo, paulicionismo, bogomilismo e dolcianismo. Todos aqueles que pensavam de encontro ao cânon romano eram violentamente perseguidos. Assim ocorreu com os almaricianos, cátaros ou albigenses e valdenses. O fim dos tempos medievais não cessaram as perseguições aos outros cristãos, como vimos nos ataques católicos contra a Reforma Protestante, a qual buscava o retorno ao purismo do cristianismo da época de Jesus.

HERESIA E INQUISIÇÃO

O Código de Direito Canônico define como heresia "a negação pertinaz, depois de recebido o Batismo, de alguma verdade que se deve crer com fé divina católica" (751).

A Inquisição foi estabelecida na França em 1231 pelo Papa Gregório IX com a finalidade inicial de combater os cátaros, grande ameaça à unidade cristã latina na época. Os inquisidores, sob a jurisdição do papa, tinham a responsabilidade de manter a ortodoxia da religião, que até então pertencera aos bispos. No século XVI, surgiu a Inquisição Espanhola, instituída pelos reis Fernando II de Aragão e Isabel I de Castela, os Reis Católicos, que na prática não era um tribunal eclesiástico mas civil, visto que não estava subordinado à Igreja mas à Coroa Espanhola. Como a Igreja só intitulava de "hereges" os "cristãos desviados", o tribunal inquisitório espanhol estava voltado aos mouros (islâmicos) e judeus.

Se tomarmos em consideração o contexto mental, histórico, cultural e político da época, muito diferentes dos atuais, não podemos julgar os inquisidores com os padrões morais de hoje. Porém, não devemos esquecer suas atrocidades, visto que o fundamentalismo violento persiste.

Texto adaptado de trecho do artigo original, "Heresias", de Myriam Morau, em Folha Paroquial - Paróquia da Santíssima Trindade-Flamengo, Arquidiocese do Rio de Janeiro-RJ, Ano XXIII, janeiro-fevereiro-março de 2016, p.10.

O acadêmico, teólogo e pregador cristão inglês John Wycliffe (c.1320-1384) é considerado o primeiro reformador moderno do cristianismo ao contestar os desmandos do clero romano. Wycliffe buscava o retorno aos princípios dos primeiros cristãos. Foi a base para os demais reformadores, como Jan Hus, Jerônimo de Praga e Martinho Lutero. Outros grandes nomes do início do protestantismo foram João Calvino e Ulrich Zwinglio.

Pintura de 1881 de Henri Motte sobre o Sítio à fortaleza de La Rochelle (na costa oeste da França) pelo Cardeal Richelieu. A histórica fortaleza havia sido tomada pelos huguenotes (protestantes franceses de linha calvinista) entre 1627 e 1628. Em nome do rei francês e do papa, o cardeal (mais militar do que clérigo) comandou o extermínio dos 27 mil insurgentes.


Alguns "Rivais" de Cristo:
Ele curou os doentes, alimentou os famintos e ressuscitou os mortos. Realizou milagres e seus seguidores disseram que era o Filho da Divindade Maior. Três dias depois de sua morte, ressuscitou e proclamou a salvação do mundo. Seu nome... Apolônio de Tiana (c.15-c.100). Ele foi apenas um dos vários pregadores e milagreiros do Século I que "competiram" com a fama e admiração das pessoas por Jesus Cristo.

Apolônio, pensador helenista ligado à escola neopitagoriana, nasceu cerca de uma década após Jesus de Nazaré e residiu em Tiana, localidade do centro-sul da antiga província romana da Capadócia, atual Turquia. Peripatético, teria viajado da Europa à Índia aprendendo, pregando sua doutrina e realizando milagres. Faleceu em idade avançada, provavelmente em Éfeso (Turquia), e "ascendeu ao Céu" logo depois (lembrando Jesus e o profeta israelita Elias).

Apolônio era divulgado nos domínios de Roma até o século IV, quando os defensores do "Cristo dos romanos" varreram a memória e os ensinamentos desse "cristo pagão" acusando-o de charlatão e ilusionista.

Escultura cretense de um filósofo errante, 
talvez de Apolônio de Tiana (século II).


Jesus Cristo, como Apolônio, se deslocava constantemente a fim de melhor divulgar seu pensamento.

Outra figura crística herege, do final do século I, foi Simão Mago. Natural da Samaria, na Palestina atual, teria sido um judeu, supostamente convertido ao cristianismo, que impressionou seus contemporâneos com "milagres", semelhantes aos de Jesus. Um de seus feitos mais conhecidos foi levitar-se bem acima do chão. Foi citado no Novo Testamento (Atos dos Apóstolos, cap. 8 ou 9), no qual o Apóstolo Pedro o repreende por querer comprar o dom de fazer milagres (receber o Espírito Santo). Deste episódio nasceu o termo "simonismo": o comércio de relíquias ou objetos sagrados (muitos deles falsificados).

Segundo o texto apócrifo Atos de Pedro, numa ocasião em que levitava ou voava, o apóstolo teria orado para que se provasse que o Mago não era um deus. O simonista logo depois caiu ao solo fraturando as pernas. O povo revoltado o apedrejou. Há fontes que contestam a história, mesmo assim a Igreja acusou Simão Mago de falso milagreiro e feiticeiro.

Apolônio de Tiana e Simão Mago, a exemplo de Ário, Pelágio e tantos outros, são algumas vítimas da intolerância ideológica, que vigorou por séculos contra pessoas que apenas pensavam diferente do único ponto de vista religioso, o autodenominado cristão romano.

O Cristo de Roma

Depois de um longo período de paz e prosperidade, o mundo romano começou a entrar em crise, a partir do século III. As invasões dos bárbaros (na concepção romana: povos estrangeiros, cuja cultura situava-se entre os civilizados e os selvagens), e a incapacidade de administrar terras tão vastas, desestabilizaram o Império. Restou à Igreja Cristã Romana o dever de garantir a unidade da cultura (língua, religião, técnicas, burocracia, leis, artes etc).

O Édito de Milão, de 313, garantiu a igualdade de direitos aos cristãos, a devolução de bens expropriados à Igreja e a abolição do culto estatal, quando imperadores, devido ao título de “Augusto”, eram adorados como deuses.

O Concílio de Niceia, em 325, garantiu a união entre Estado e Igreja. Muitos pagãos, sobretudo cidadãos romanos, converteram-se ao cristianismo visando facilidades políticas, a exemplo do próprio imperador Constantino I, que só foi batizado no final da vida.


Antigo baixo-relevo com o símbolo do Império Romano cristianizado.
Utilizado nos estandartes romanos a partir da Batalha da Ponte Milvia, em 312, quando Constantino venceu o Imperador Maxêncio, usurpador do trono romano. Constantino supostamente teve uma visão ao olhar o sol poente: as letras gregas "XP" (Chi-Rho, as primeiras duas letras de "Cristo") entrelaçadas com uma CRUZ apareceram-lhe enfeitando o sol, juntamente com a inscrição latina In Hoc Signo Vinces (sob este símbolo vencerás). Constantino, que era pagão (apesar da mãe, Helena, ter sido provavelmente cristã), colocou a insígnia nos escudos dos soldados. Depois foram acrescentadas as letras "alfa" e "ômega", que fazem alusão também a Jesus (ver Apocalipse 1:8).


Busto de Flávio Valério Aurélio Constantino Augusto ou Constantino I (c.272-337).
Como todo bom general romano, Constantino respeitava todos os deuses, inclusive os dos inimigos. Homem supersticioso e político, não foi à toa que se rendeu ao cristianismo, crença muito em voga já em sua época.


baixo-relevo em prata (detalhe) de Flávio Teodósio Augusto ou Teodósio I (347-395).
Imperador romano (cujo nome, em grego, significa literalmente "Dom de Deus") que pôs fim à liberdade de crença garantida pelo Édito de Milão (com o Édito de Tessalônica, em 391) garantindo, assim, a hegemonia cristã.

A Igreja copiou as estruturas organizacionais do Império Romano. Províncias foram reorganizadas em prefeituras e dioceses (jurisdições dos bispos). A autoridade única dos presbíteros (sacerdotes ou padres que provinham missas) foi substituída por uma hierarquia de bispos (de províncias e capitais provinciais), arcebispos (bispos metropolitanos) e patriarcas (de Roma, Antioquia, Alexandria, Constantinopla e Jerusalém). Sacerdotes de grandes centros urbanos também ganharam prestígio.


Império Romano (do Ocidente e Oriente) em 400 d.C, época da morte de Teodósio I, quando foi reorganizado em prefeituras e dioceses.

As dioceses ficavam nas principais cidades e os sínodos (assembléia de eclesiásticos) nas capitais. Roma, sé episcopal de São Pedro e capital da "dignidade", dividia a "autoridade" com as quatro principais cidades do Império (os demais quatro patriarcados). A primazia papal só surgiu em 455, quando o imperador Valentiniano apoiou o primeiro papa de chefia política efetiva, após 44 anteriores: Leão I, que havia convencido o terrível Átila, o Huno, a não invadir a Península Itálica.


Faça-se o Clero!

O clero deixou de dedicar-se exclusivamente à religião para envolver-se em questões seculares (do latim, saeculum: mundo), ou seja, às atribuições políticas, econômicas e administrativas. O contato com a vida profana fez com que clérigos se vinculassem demasiadamente às propriedades da Igreja e aos problemas administrativos, ou seja, à materialidade, degenerando-se nos costumes, distanciando-se da pregação doutrinária.

Iluminura de fins do século XIII denunciando o desvirtuamento do clero: um monge bebendo escondido o vinho da adega da abadia.

Como tentativa de dar maior ênfase ao espiritualismo, surgiu o clero regular (do latim, regula: regras, normas). Monges começaram a se recolher em mosteiros, isolados da vida mundana, sob votos de caridade, castidade e pobreza (nem sempre observados na prática por alguns). São Pacônio do Egito (séc. IV) e o criador da Ordem dos Beneditinos, São Bento de Núrsia (séc. VI), são considerados fundador e consolidador, respectivamente, da vida monástica. Nas abadias (mosteiros chefiados por abades) juntos às atividades agrícolas e artesanais, os monges preservaram e recuperaram obras da antiga cultura greco-romana.


Pintura moderna sobre um mosteiro no deserto, a exemplo dos monges coptas do Egito (responsáveis pela conversão de diversos pagãos na região). A Igreja Ortodoxa Copta de Alexandria foi uma das primeiras a se separarem da Igreja romana, a partir do Concílio de Calcedônia, em 451.

Foto da Abadia de Mont Saint-Michel, na Baixa Normandia (região litorânea do Norte da França). As primeiras fundações do monastério, construído sobre um rochedo (ilha costeira), datam do séc. VIII. A fortificação, erguida contra bárbaros e demais inimigos, foi favorecida pelo mar, pois, antes da construção de uma ponte, o acesso terrestre só era possível durante a maré baixa.

Acredita-se que a história da abadia do monte Saint-Michel tenha começado em 708, quando Aubert, bispo de Avranches, mandou construir no monte Tombe um santuário em honra a São Miguel Arcanjo (Saint-Michel). No século X os monges beneditinos instalaram-se na abadia e uma pequena vila foi-se formando aos seus pés. Durante a Guerra dos Cem Anos, entre França e Inglaterra, o Monte Saint-Michel foi uma fortaleza inexpugnável, resistindo a todas as tentativas inglesas de tomá-la e constituindo-se, assim, em símbolo da identidade nacional francesa. Após a dissolução da ordens religiosas ditadas pela Revolução Francesa de 1789 até 1863 o Monte foi utilizado como prisão.
Fonte: perfil do Facebook de "Cinefrance Cine".

Alguns Problemas Católicos:

O Celibato dos Clérigos

Curiosamente, o celibato aos clérigos católicos, apesar de recomendado desde as epístolas de Paulo de Tarso, só se tornou obrigatório no início da Baixa Idade Média (séculos XI e XII). O Papa Inocêncio III (c.1160-1216) suprimiu o ainda existente casamento no clero menor. Além dos motivos religiosos, tal castidade prevenia a espoliação dos bens da Igreja pelos herdeiros dos religiosos.

O pesquisador e autor espírita brasileiro Walter Barcelos faz  as seguintes observações sobre o sexo perante o celibato:

Deus não criaria alguma coisa [o ato sexual], para que Ele mesmo, depois, proibisse a sua utilização.

[...]

A abstinência sexual e a vida celibatária não são requisitos absolutos para os Espíritos, mas somente para uma determinada fração de criaturas, atendendo suas necessidades particulares de serviço, resgate e burilamento.

[BARCELOS, Walter. Sexo e evolução. Rio de Janeiro: FEB, 1995, pp. 264-5, com adição]

Sobre os religiosos celibatários, sem real vocação, alerta:

Vida monástica, por si só, não é sinônimo de evolução espiritual. Podemos passar uma vida toda com disciplinas rígidas e não aproveitá-las para o aprimoramento dos sentimentos.

Num regime de abstenção sexual, sem desenvolver os valores do coração, através do serviço de amor desinteressado aos semelhantes, a alma continuará estacionária e sem sublimação das energias sexuais.

[Idem, p. 269]

O Espírito Emmanuel, que já foi padre em mais de uma existência pretérita, explica, através da psicografia de Chico Xavier:


Indubitavelmente, os que consigam abster-se da comunhão afetiva, embora possuindo em ordem todos os recursos instrumentais para se aterem ao conforto de uma existência a dois, com o fim de se fazerem mais úteis ao próximo, decerto que traçam a si mesmos escaladas mais rápidas aos cimos do aperfeiçoamento. 

[...] porquanto a energia sexual neles não estancou o próprio fluxo; essa energia simplesmente se canaliza para outros objetivos - os de natureza espiritual.

[EMMANUEL (Espírito), psicografado por Francisco Cândido Xavier. Vida e sexo. Rio de Janeiro: FEB, 2003, 24.ed., p. 98]

Assim se refere àqueles que conseguem utilizar de maneira correta o celibato. Ressalta, inclusive, a vida celibatária voluntária ou forçada, assumida em compromisso pelo próprio indivíduo antes da reencarnação, com fins reeducativos (situação de prova e expiação). No entanto, essa castidade em muitos casos não é observada. Sobre sexo e religião, Emmanuel esclarece ainda sob uma visão psicológica:

... aqueles outros que renascem sob regime disciplinar, requisitados por eles contra eles mesmos, de vez que grande número desses obreiros das ideias religiosas, reencarnados em condições de prova, demonstram dificuldades e inibições múltiplas, no corpo e na mente, quando não sofrem exagerada tendência aos desvarios sexuais - tendência essa que habitualmente os mantém recolhidos ao medo de qualquer expansão afetiva. Temendo as manifestações do amor e bastas vezes condenando indebitamente os companheiros da Humanidade, pelo fato de se acomodarem a uniões respeitáveis e dignas, na generalidade receiam a si próprios e censuram os semelhantes, no impulso inconsciente de lhes copiar a independência e a conduta.

Daí surgem os incidentes menos felizes - quantas vezes! – em que vemos expositores ardentes e apaixonados, dessa ou daquela ideia religiosa, tombando em experiências emotivas, muito mais complicadas e deploráveis do que aquelas outras que eles próprios reprovavam no caminho e na vida dos companheiros!...

[p. 107]

Sobre esse ponto, Paulo alertou profeticamente: Mas o Espírito expressamente diz que nos últimos tempos apostatarão alguns da fé, dando ouvidos a espíritos enganadores [...]. Proibindo o casamento... (1 Timóteo 4, 1 e 3).

Nesta iluminura medieval vemos a denúncia à um dos desvios do clero: a quebra do voto de castidade, visto que o eclesiástico requisita os serviços de uma prostituta. Acredita-se que a organização ou profissionalização da prostituição iniciou-se com os concílios medievais. Sabe-se que o de Constança (no sul da atual Alemanha), que durou de 1414 a 1418, requisitou a presença de cerca de 700 meretrizes para servirem aos religiosos. No mesmo concílio, Jan Hus foi condenado à fogueira e João XXIII foi destituído do papado romano.


Cena de Jan Hus diante do Concílio de Constança (1883), de Václav Brozik.

A existência celibatária utilizada de forma correta para elevação do Espírito, em dedicação completa ao trabalho no Bem, é bastante meritória, embora poucos consigam tal objetivo.

Os Espíritos que auxiliaram Allan Kardec a divulgar a Doutrina, no século XIX, orientaram sobre o assunto:


Dois sistemas se defrontam: o dos ascetas, que tem por base o aniquilamento do corpo, e o dos materialistas, que se baseia no rebaixamento da alma. Duas violências quase tão insensatas uma quanto a outra. 

Ao lado desses dois grandes partidos, formiga a numerosa tribo dos indiferentes que, sem convicção e sem paixão, são mornos no amar e econômicos no gozar. Onde, então, a sabedoria? Onde, então, a ciência de viver? Em parte alguma; e o grande problema ficaria sem solução, se o Espiritismo não viesse em auxílio dos pesquisadores, demonstrando-lhes as relações que existem entre o corpo e a alma e dizendo-lhes que, por se acharem em dependência mútua, importa cuidar de ambos. 

Amai, pois, a vossa alma, porém, cuidai igualmente do vosso corpo, instrumento daquela. Desatender as necessidades que a própria Natureza indica, é desatender a lei de Deus. Não castigueis o corpo pelas faltas que o vosso livre-arbítrio o induziu a cometer e pelas quais é ele tão responsável quanto o cavalo mal dirigido, pelos acidentes que causa. Sereis, porventura, mais perfeitos se, martirizando o corpo, não vos tornardes menos egoístas, nem menos orgulhosos e mais caritativos para com o vosso próximo? Não, a perfeição não está nisso: está toda nas reformas por que fizerdes passar o vosso Espírito. Dobrai-o, submetei-o, humilhai-o, mortificai-o: esse o meio de o tornardes dócil à vontade de Deus e o único de alcançardes a perfeição. – Jorge, Espírito Protetor. (Paris, 1863.)

[KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro. Rio de Janeiro: FEB, 2002, cap. XVII, item 11, 120ª.ed., pp. 362-3]

Parece lógico que as questões espirituais devem ser trabalhadas no Espírito, tanto para os ativos quanto aos inativos da prática sexual. Para Deus o que importa é o bom comportamento moral do ser humano, não o fato de praticar ou não o sexo.

A Revelação Espírita é bem clara quanto a isso:

[pergunta feita ao Espírito:] 698. O celibato voluntário representa um estado de perfeição meritório aos olhos de Deus?

[resposta do Espírito através de um médium:] “Não, e os que assim vivem, por egoísmo, desagradam a Deus e enganam o mundo.”

699. Da parte de certas pessoas, o celibato não será um sacrifício que fazem com o fim de se votarem, de modo mais completo, ao serviço da Humanidade?

“Isso é muito diferente. Eu disse: por egoísmo. Todo sacrifício pessoal é meritório, quando feito para o bem. Quanto maior o sacrifício, tanto maior o mérito.”

[observação de Allan Kardec:] Não é possível que Deus se contradiga, nem que ache mau o que Ele próprio fez haver na violação da Sua lei. Mas, se o celibato, em si mesmo, não é um estado meritório, outro tanto não se dá quando constitui, pela renúncia às alegrias da família, um sacrifício praticado em prol da Humanidade. Todo sacrifício pessoal, tendo em vista o bem  e sem qualquer ideia egoísta, eleva o homem acima da sua condição material.

[KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Trad. Guillon Ribeiro. Rio de Janeiro: FEB, 1995, 76ª.ed., pp. 335-6, com adições]


Eis uma charge bem-humorada sobre a criação do sexo por Deus e o mau uso da prática pelos seres humanos:



O autor espírita brasileiro Jorge D. Martins resumiu as reais finalidades da prática sexual, equilibrada e responsável, entre um casal de sexos diferentes ou iguais:

... O sexo é a força criativa que nos proporciona o sagrado e doce nome de mãe e pai; o lar, com a primeira e mais importante instituição educativa da vida; a reencarnação, como grande instrumento de resgate e progressos evolutivos; e, as alegrias de momentos edificantes de trocas de energias fundamentais para o equilíbrio psíquico e orgânico.

[MARTINS, pp. 112-3]

Portanto, o sexo serve a reprodução do corpo biológico (casa temporária ao Espírito), ao fortalecimento do amor entre o casal - não necessariamente casado diante das instituições religiosas ou civis - e, é claro, a obtenção do prazer sexual, que, para gerar um real benefício, deve ser obtido de forma equilibrada, respeitosa e responsável

Sobre o celibato e a preferência sexual dos indivíduos, o autor também fez ressalvas:

... A privação do regime sexual é de perigosa recomendação, devendo ser ministrada em caráter reservado, em casos raros, de missões e tarefas específicas. Paulo, atento ao desvios repressores, indaga: "Não temos nós o direito de levar conosco uma crente esposa, assim como os outros apóstolos, e os irmãos dos senhor Cefas [Pedro]?" (1 Co 9, 4-5). A repressão é tão grave como a liberação irresponsável. É indubitável que o sexo, quando praticado com discernimento e responsabilidade, é alimento para as almas, energizando as baterias psicofísicas. Não vamos também pensar, como comentou comigo um confrade espírita, que a frase de Matias [ou Zaqueu, ex-publicano, uma das reencarnações de Adolfo Bezerra de Menezes], "sem nenhum prazer desordenado", seja alguma reprimenda ao homossexualismo. Longe disso! Homossexual e heterossexual são uma questão de morfologia e não de caráter espiritual e moral.

[p. 113, com adições]

Cada indivíduo reencarna com a preferência ou afinidade sexual às pessoas do mesmo sexo ou de sexo diferente ao dele. Entretanto, praticar ou não essa sexualidade (fisicamente) depende, na maioria dos casos, da vontade (livre-arbítrio) da pessoa.

Ora, afinal, o celibato é bom ou não ao homem? Resposta: depende do homem (ou da mulher). Se o indivíduo estiver apto a praticá-lo, permanente ou temporariamente, com fins missionários ao Bem, o celibato lhe será de grande valia, de acordo com o pensamento paulino: Estás ligado à mulher? não busques separar-te. Estás livre de mulher? não busques mulher (1 Coríntios 7,27).

O Espiritismo nos garante que o sexo em si, ou seja, a presença (equilibrada) ou ausência de sua prática entre as pessoas, não é maléfica. 

O voto de Castidade e Pobreza

Para os antigos, ancestrais dos povos greco-romanos, o celibato era antinatural, aliás, um crime à humanidade. Justamente a religião (neste caso, doméstica, não institucional) era quem exigia o casamento, pois todas as famílias ordenavam que seus filhos, e somente eles, rendessem culto aos pais falecidos. Esse tipo de cerimônia fúnebre garantia, segundo suas crenças, a vida de todos os ancestrais da família no Além.

... o celibato era algo ruim e punível. [...] quando o celibato deixou de ser proibido pelas leis, continuou a sê-lo pelos costumes. [...] o homem não se pertencia, mas sim à família. Era o membro de uma série, e era preciso que a série não terminasse nele. Não nascera por acaso; haviam-no introduzido na vida para que continuasse um culto; não devia deixar a vida sem ter certeza de que esse culto prosseguiria depois dele.

[FUSTEL DE COULANGES, p.62]

O Evangelho de Matias, considerado herético, ou seja, não aceito pela Igreja Católica Romana, diz que se deve abusar da carne. A palavra “carne” designa tanto o alimento, quanto o ato sexual. Contudo, neste caso, o termo “abusar” (no original grego, paraxrestoi) possui conotação diferente. Matias concorda com os conselhos de Paulo de Tarso: tudo me é permitido, mas nem tudo me convém (1 Coríntios 6,12). Portanto, devemos USAR (o real sentido do verbo) a carne sem abusarmos dela. O sexo é quase como a comida e a bebida: no exagero ou na escassez podem fazer mal.

Venerado seja entre todos o matrimônio e o leito sem mácula; porém, aos que se dão à prostituição, e aos adúlteros, Deus os julgará (Hebreus 13,4). Esse "julgamento divino" normalmente é feito por algumas pessoas prejudicadas pelo indivíduo faltoso, e pela consciência (arrependimento e remorso) do mesmo.

Matias e Paulo não proibiram o consumo de carne vermelha e nem o ato sexual entre os cristãos, mas, apenas, aconselharam que evitassem seus abusos (ver Gálatas 5,19-21). Ora, se assim recomendaram a todos os cristãos, padres e freiras deveriam estar incluídos.

Aliás, tal asceticismo - a exigência do celibato aos religiosos - não existia na época da Igreja primitiva. Os religiosos diferentemente de hoje eram, na maioria, homens e mulheres casados e com filhos, que simplesmente dedicavam a vida a pregar a Boa Nova (Evangelho) e auxiliar o próximo necessitado.

Antes do séc. IV, não existiam mosteiros e conventos que enclausuram pessoas, voltando-as a uma vida de pura contemplação reclusa. Longe disso, os primeiros cristãos buscavam viver e ser útil igual ao Cristo: no meio do povo, dos pecadores, dos pagãos etc., pois entre eles está a Salvação.

Muitos apóstolos tinham esposa e filhos. Se porventura deixaram de conviver com suas famílias, foi devido aos longos períodos de viagem ou para evitar que os colocassem em perigo (pois eram perseguidos), ou seja, foi por opção ou preferência individual, não por imposição de alguém. Não há passagem no Novo Testamento que indique Jesus exigindo o celibato dos discípulos.

Os santos Timóteo e Maura (1885), de Henryk Siemiradzki.
Segundo a tradição cristã, Timóteo de Perapeis (no Egito) e a esposa Maura, martirizados no início do século IV, formaram um casal exemplar no período do cristianismo primitivo.

UMA EXCEÇÃO: O CRISTIANISMO NAS TERRAS DOS CELTAS BRITÂNICOS

As Ilhas Britânicas eram a fronteira mais isolada do Império Romano, por isso diversos aspectos da cultura céltica e druídica perduraram mesmo após a chegada dos romanos e do cristianismo (alguns existem até hoje). As mulheres celtas, por exemplo, desempenhavam na sociedade papéis tão importantes quanto os dos homens, como as druidesas .

... Uma carta datada do século VI, enviada a dois sacerdotes bretões [...] por seus superiores, adverte-os no sentido de pararem de celebrar a missa com a ajuda de mulheres. Essas mulheres-sacerdotisas distribuíam, entre outras atividades, o pão da eucaristia.

[MONTEIRO, Eduardo C. Allan Kardec: o druida reencarnado. São Paulo: Eldorado, out. 1996, 2ª ed., p. 35-6]

O catedrático britânico Thomas Bulfinch relatou os costumes de alguns dos primeiros cristãos de sua terra. O irlandês Columbano, junto com 12 amigos (número intencionalmente apostólico), embarcou na Ilha de Iona (Oeste da Escócia), em 563, para converter os celtas e druidas da região. Com o tempo, os religiosos de sua regra passaram a se chamar culdee (nome talvez de origem latina, de cultores Dei: adoradores de Deus). Viviam em uma abadia, porém essa instituição era bem diferente do que atualmente conhece-se. Ao entrar para o mosteiro, os iniciantes apenas deviam fazer o voto da obediência. Os juramentos de pobreza e celibato eram ausentes entre os monges culdees.

Alguns missionários de Columbano eram irlandeses druidas convertidos que pregaram o cristianismo na antiga Gália (França), entretanto o druidismo ainda estava bastante arraigado; o sacrifício humano era um costume entre os druidas.

... Conta-se que quando São Columbano estava construindo sua primeira igreja na ilha escocesa de Iona, um de seus operários apresentou-se como voluntário para ser sepultado vivo nas fundações e garantir que o prédio resistisse para sempre.

[MONTEIRO, p. 78]

Esses clérigos trabalhavam muito, normalmente em atividades agropastoris e na pesca, para garantir um sustento confortável a si mesmos e à família. Sim! Os monges tinham permissão para casarem. As esposas não podiam conviver com eles na abadia, mas residiam em casas adjacentes. Os culdees viviam com as mulheres e filhos, menos quando deviam realizar afazeres no mosteiro, como lecionar aos jovens na escola. Desta forma, assemelhavam-se aos pastores protestantes que surgiram séculos depois. Não foi por acaso que em regiões como o Norte da Escócia a Reforma foi mais completa.

Sob este e outros aspectos os culdees fugiram às regras estabelecidas pela Igreja Romana e, consequentemente, foram julgados hereges. O resultado disso foi que, à medida que aumentava o poder da Igreja Romana, a dos culdees enfraquecia. Mas somente no século XIII é que as comunidades dos culdees foram extintas e seus membros dispersados. Contudo, prosseguiram trabalhando individualmente e resistiram a usurpação papal tanto quanto puderam, até que a luz da Reforma [protestante] despontou sobre o mundo.

[BULFINCH, Thomas. O livro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Trad. Luciano Alves Meira. São Paulo: Martin Claret, 2006, pp.451-4, com adição]


Réplica de cruz dos culdees nas ruínas do mosteiro de Clonmacnoise, na região central da Irlanda.

Não afirmamos que os antigos cristãos não praticaram o celibato, afinal, o próprio Paulo de Tarso, o Apóstolo dos Gentios, provavelmente foi celibatário durante sua vida de pregador cristão. Entretanto, era recomendado somente em casos especiais, aos poucos cristãos que estavam preparados, e tinham real vocação para exercer uma missão apostólica. Jamais concordariam com a imposição feita a todos os clérigos católicos, sem exceção.

Outro aspecto combatido pela Reforma foi o voto de pobreza. Graças a tal oposição protestante, a visão de prosperidade econômica individual boa aos olhos de Deus, negada durante a Idade Média, pode ser revivida. A Igreja Católica condenava o lucro, então, as atividades bancárias, por exemplo, não podiam evoluir.

O Evangelho nunca recomendou a pobreza miserável e espontânea. Parece-nos lógico, que o cristão deve ajudar o pobre e o miserável num primeiro momento, como no caso da esmola, para que eles, se tiverem condições físicas e mentais, possam manter-se através de trabalho honesto.


Oito ou Oitenta
O oposto do voto de pobreza




 
A "venda de indulgências" (perdão dos pecados) foi uma das formas (desonestas) que a Igreja elaborou para arrecadar dinheiro e demais bens materiais dos fiéis. O papa Leão X (1475-1521) usou como justificativa a reconstrução da Basílica de São Pedro. Em 1517, Martinho Lutero, ex-frade agostiniano, pregou na porta da Igreja de Todos os Santos de Wittenberg (Alemanha) 95 teses que protestavam contra os abusos da Igreja. Este foi o marco do nascimento da Reforma Protestante. Práticas que lembram "o tilintar do ouro no cofre, que automaticamente salva uma alma" ainda são observadas, a exemplo de alguns ramos pentecostais (que curiosamente surgiram das antigas instituições protestantes).

Lutero, que se casou com uma ex-freira, também achou o celibato algo antinatural para a maioria dos religiosos. Tal posicionamento, serviu de exemplo aos demais pastores protestantes, que, diferente dos religiosos católicos, podem contrair matrimônio.

Defendeu também o culto e a publicação da Bíblia nas línguas locais, mais acessíveis à maioria dos fiéis do que o latim (facilitando assim a livre interpretação das Escrituras).

Lembramos que os primeiros cristãos se desfaziam dos bens apenas para compartilharem sua riqueza com a comunidade em que viviam (o verdadeiro comunismo). Além disso, muitos deles trabalhavam em benefício próprio e da família, paralelamente à vida religiosa.

Algo desse princípio poderia ser aplicado a diversos religiosos, que dependem exclusivamente das oferendas dos fiéis para sustentarem-se. Seria ruim aos olhos de Deus trabalhar de forma honesta e remunerada? O dinheiro, independente da quantidade e conseguido de forma digna, nunca foi uma perdição. Igual a comida, bebida e o sexo, somente o mau uso dele é prejudicial: acumular ou gastar sem o ético benefício próprio e de outros.

Logicamente tais asceticismos católicos nunca funcionaram corretamente em todos. A Reforma surgiu protestando contra atos do clero católico que contradiziam suas pregações moralizadoras, como a venda de indulgências (o perdão dos pecados mediante pagamento em dinheiro) e a quebra do voto do celibato por diversos clérigos (incluindo alguns papas).


O Erro do Confessionário

A confissão auricular, costume católico, pode ser o início do calvário social à diversas pessoas vítimas de falsos moralistas da Igreja.

Nos tempos apostólicos, a confissão era uma espécie de terapia psicológica. O indivíduo que confessasse suas faltas a outra pessoa reforçava sua vontade em melhorar-se moralmente (lembramos que nos primeiros séculos da Era Cristã não havia ainda o clero regular, este foi antecedido por apenas cristãos mais experientes, a exemplo dos coordenadores das comunidades)

O Espírito guia do grande médium mineiro, Chico Xavier, esclarece-nos sobre o assunto:

... A confissão pública dos próprios defeitos, nos tempos apostólicos, constituía para o homem forte barreira, evitando sua reincidência na falta [...].

Todavia, os tempos decorreram e, no seu transcurso, observou-se a transformação radical de todas as leis sublimes de fraternidade cristã, anteriormente preconizadas.

[...]

A confissão auricular constituiu uma aberração, dentro do amontoado das doutrinas desvirtuadas do romanismo. E é justamente a mulher, pelo espírito sensível de religiosidade que caracteriza, a maior vítima do confessionário.

[...]

Os padres, geralmente, em virtude do seu desconhecimento dos sagrados deveres da paternidade, não a vão interpelar no tocante às obrigações austeras do governo da casa; ferem exatamente os problemas mais íntimos e mais delicados da vida do casal, violando o sagrado respeito das questões do lar, dando pasto aos pensamentos mais injustificáveis e, ás vezes, repugnantes.

[XAVIER, Emmanuel: dissertações mediúnicas, pp. 52-3, com sublinhas]

Aos que necessitam de confissão, como alento psicológico e espiritual, Emmanuel aconselha:

... Confessai-vos uns aos outros, buscando de preferência aqueles a quem ofendestes e, quando a vossa imperfeição não vo-lo permita, procurai ouvir a voz de Deus, na voz da vossa própria consciência.

[XAVIER, p. 54]


EPÍLOGO


complexa instituição católica apostólica romana ("igreja", do latim ecclesia: assembléia, referindo-se às reuniões dos primeiros cristãos) em nada lembrava o cristianismo primitivo ou "puro" do século I ao III, quando a fé inicialmente se propagou em localidades judaicas na Palestina.


A Conversão de Paula por São Jerônimo (1898), de Lawrence Alma-Tadema.
Essa pintura sobre a cristianização da santa romana Paula (347-404), por seu "preceptor cristão" Jerônimo de Strídon (c.347-420), é uma cena romanceada da vida do santo responsável pela organização da Vulgata: a única versão da Bíblia aceita pela Igreja Católica Romana, originalmente escrita em latim.

Parentes e amigos próximos a Jesus (a exemplo dos Apóstolos, Maria de Nazaré, Maria de Magdala ou Madalena, Maria de Betânia, Joana de Cusa e Zaqueu Matias) formaram os primeiros núcleos de judeus convertidos em cristãos. As primeiras comunidades não estavam voltadas apenas à pregação, mas também a todo tipo de auxílio aos mais necessitados, como o Mestre fazia.

Os santos Pedro e João Evangelista curando o coxo (1655), de Nicolas Poussin.

Para evitar que formassem uma dinastia de reis divinos, os nomes dos parentes terrenos de Jesus foram "apagados da História". Pois, como Ele mesmo disse: ...qualquer um que fizer a vontade de meu Pai que está nos céus, este é meu irmão, e irmã e mãe (Mateus, 12:48).

A maior parte das conversões acontecia nos centros urbanos, pois nas áreas rurais predominava o paganismo. Com seus missionários Saul, Saulo ou Paulo, da cidade de Tarso (ao Sul da atual Turquia), ex-judeu fariseu perseguidor dos cristãos, foi o principal divulgador do Evangelho de Jesus entre os gentios e judeus que negavam a fé. 

As revoltas dos judeus contra os cristãos explodiram, principalmente quando os segundos não apoiaram a Grande Rebelião Judaica contra Roma em 66 d.C (fato que gerou a primeira Grande Diáspora ou Dispersão Judaica, após a destruição de Jerusalém em 70 d.C.). Diferentemente dos gentios, o judaísmo não foi banido do "mundo cristão", apenas controlado para evitar que se expandisse como o cristianismo. 

Ao longo dos séculos, por certos períodos, leis de nações ocidentais proibiram judeus de possuírem terras, de casarem com cristãos, de terem cargos públicos etc. Sobretudo na Península Ibérica, judeus - considerados hereges à Igreja - foram expulsos, presos, torturados ou mortos pela Inquisição (o mesmo aconteceu com os muçulmanos ou mouros). Muitos se converteram ao cristianismo apenas formalmente e mantiveram a crença judaica em segredo, para fugirem das perseguições. Os convertidos eram chamados de "cristãos novos".

Eis as raízes do antissemitismo que causaram, no séc. XX, o holocausto (do grego, "queimar completamente": termo usado nos sacrifícios dos templos).


Destruição do Templo de Jerusalém (1867), de Francesco Hayez.

O Triunfo de Tito (1885), de Sir Lawrence Alma-Tadema.
Ao fundo, notam-se os espólios do Segundo Templo de Jerusalém, a exemplo do grande menorá de ouro maciço (candelabro de sete hastes) do Santo dos Santos (o principal salão sagrado).

Na Primeira Guerra Judaico-romana (66-73 d.C.), o general e futuro imperador romano Tito Flávio César Vespasiano sitiou Jerusalém e saqueou e destruiu o Templo [Não ficará pedra sobre pedra que não seja derrubada (Mateus 24:1 e Marcos 13:1)]. Quase 1 milhão de judeus sobreviventes foram escravizados ao fim da revolta e desterrados para diversas regiões do Império. Cerca de mil judeus zelotes, que se refugiaram na fortificação de Masada (no deserto ao Sul de Jerusalém), preferiram tirar a própria vida juntamente com esposas e filhos, do que se tornarem escravos dos romanos.

Entre o ano 132 e 136 d.C., os judeus tentaram retomar Israel dos romanos na Revolta de Bar Kokhba (nome do líder judeu). Apesar de terem destruído duas legiões romanas, novamente os judeus foram massacrados (cerca de 300 mil tombaram em batalha). Após serem novamente derrotados, os judeus foram expulsos e proibidos de retornar a Israel por um longo tempo.

Os cristãos - afirma a tradição - não apoiaram as revoltas contra Roma e culparam os judeus revoltosos pela destruição do Segundo Templo de Jerusalém. Tal posicionamento estimulou a profunda cisão entre judeus e os cristãos primitivos, pois até então o cristianismo eram considerado apenas um ramo do judaísmo por ambos. 


Alguns interpretam que o Evangelho canônico de João (que foi escrito mais tarde em comparação com os outros três, por volta do ano 100) culpa ostensivamente os judeus pela morte de Jesus, o que reforçou mais a cisão entre as duas religiões. O texto de João, acreditam alguns estudiosos, também procura apagar as origens judaicas de Jesus, dos parentes de Cristo, dos Apóstolos e demais seguidores. Essa escritura, pois, demarca a mudança de identificação entre as crenças, o afastamento completo do cristianismo do meio judaico. Esse evangelho, além de outros textos e crendices, ao longo dos séculos serviram para hostilizar e perseguir os judeus, sobretudo na Europa cristianizada.

Conversão na Estrada de Damasco (1600), de Caravaggio. 
Retrata o episódio do Novo Testamento, que transformaria o judeu Saulo de Tarso (c.5-c.67 d.C.) no futuro santo cristão Paulo (ver Atos, cap. 9).


Apóstolo Paulo pregando nas ruínas (1744), de Giovanni Paolo Pannini.

As quatro viagens de São Paulo, para pregar e orientar as igrejas cristãs nascentes até sua morte por decapitação em Roma, por volta do ano 67, sob a regência de Nero.

O Édito de Tessalônica, em 391, sob a regência de Teodósio I, tornou o cristianismo a única religião aceita no Império. Vários cristãos retaliaram a intolerância sofrida no passado destruindo ou cristianizando templos pagãos e perseguindo quem não se convertia, mais por razões políticas do que religiosas. Eis as raízes do Tribunal do Santo Ofício ou Inquisição, instaurado pela primeira vez no séc. XIII.

Ao longo dos séculos, divergências político-religiosas produziram cisões no cristianismo gerando várias vertentes. Hoje, além dos católicos apostólicos romanos, citamos a Igreja Assíria; os ortodoxos orientais, do Leste e cristãos de São Tomás; e os descendentes da Reforma Protestante (séc. XVI): anglicanos, luteranos, metodistas, congregacionistas, presbiterianos, Igrejas Reformadas, batistas, Movimento de Santidade, adventistas, pentecostais e anabatistas.

Linha do tempo simplificada, em inglês, das principais ramificações da crença cristã.

Com a transferência da capital do império para Constantinopla, no século IV, iniciou-se, paulatinamente, a divisão entre católicos (cristãos ligados a um papa) e ortodoxos (cristãos ligados a um patriarca), até culminar no Grande Cisma do Oriente em 1054. Mas, como vemos na linha acima, outras cisões no cristianismo latino ocorreram anteriormente, no século V.

Há outras religiões ou doutrinas espiritualistas de orientação ou sincretismo cristão não citadas, a exemplo do Candomblé, Umbanda e Espiritismo.
Sobre este último, seu principal organizador, Allan Kardec, esclareceu sobre a descendência cristã e evolução da Doutrina Espírita, sem subestimar as demais religiões:
Ele [o Espiritismo] repousa, por conseguinte, em princípios independentes das questões dogmáticas. Suas conseqüências morais são todas no sentido do Cristianismo, porque de todas as doutrinas é esta a mais esclarecida e pura; razão pela qual, de todas as seitas religiosas do mundo, os cristãos são os mais aptos para compreendê-lo em sua verdadeira essência.

***
... a melhor de todas as religiões é aquela que só ensina o que é conforme à bondade e justiça de Deus [...].

[KARDEC, Allan. O que é o espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 50ª ed., 2004, p. 130-2]

Quando uma pessoa sofre um delírio, se chama loucura. Quando muitas pessoas sofrem um delírio, isso se chama religião (Robert M. Pirsig).

A definição do autor americano não é uma verdade absoluta. Vejamos a definição dada por Kardec sobre religião verdadeira, a interior:

A Religião Exterior x A Religião Interior

10 –

Os Judeus haviam negligenciado os verdadeiros mandamentos de Deus, apegando-se à prática de regras estabelecidas pelos homens, e das quais os rígidos observadores faziam casos de consciência. O fundo, muito simples, acabara por desaparecer sob a complicação da forma. Como era mais fácil observar a prática dos atos exteriores, do que  se reformar moralmente, de lavar as mãos do que limpar o coração, os homens se iludiam a si mesmos, acreditando-se quites com a justiça de Deus, porque se habituavam a essas práticas e continuavam como eram, sem se modificarem, pois lhes ensinavam que Deus não exigia nada mais. Eis porque o profeta dizia: “É em vão que esse povo me honra com os lábios, ensinando máximas e mandamentos dos homens”.

Assim também aconteceu com a doutrina moral do Cristo, que acabou por ser deixada em segundo plano, o que faz que muitos cristãos, à semelhança dos antigos judeus, creiam que a sua salvação está mais assegurada pelas práticas exteriores do que pelas da moral. É a esses acréscimos que os homens fizeram à lei de Deus, que Jesus se refere, quando diz: “Toda a planta que meu Pai não plantou, será arrancada pela raiz”.

A finalidade da religião é conduzir o homem a Deus. Mas o homem não chega a Deus enquanto não se fizer perfeito. Toda religião, portanto, que não melhorar o homem, não atinge a sua finalidade. Aquela em que ele pensa poder apoiar-se para fazer o mal, é falsa ou foi falseada no seu início. Esse é o resultado a que chegam todas aquelas em que a forma supera o fundo. A crença na eficácia dos símbolos exteriores é nula, quando não impede os assassínios, os adultérios, as espoliações, as calúnias e a prática do mal ao próximo, seja qual for. Ela faz supersticiosos, hipócritas e fanáticos, mas não faz homens de bem.

Não é suficiente ter as aparências da pureza, é necessário antes de tudo ter a pureza de coração.

[KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Trad. José Herculano Pires. Cap. VIII – Bem-aventurados os puros de coração, Verdadeira Pureza e Mãos Não Lavadas]

RELIGIÃO X ESPIRITUALIDADE

A religião não é apenas uma, são centenas. A espiritualidade é apenas uma.

A religião é para os que dormem. A espiritualidade é para os que estão despertos.

A religião é para aqueles que necessitam que alguém lhes diga o que fazer e querem ser guiados. A espiritualidade é para os que prestam atenção em sua Voz Interior.

A religião tem um conjunto de regras dogmáticas. A espiritualidade te convida a raciocinar sobre tudo, a questionar tudo.

A religião ameaça e amedronta. A espiritualidade lhe dá Paz Interior.

A religião fala de pecado e de culpa. A espiritualidade lhe diz: "aprenda com o erro".

A religião reprime tudo, te faz falso. A espiritualidade transcende tudo, te faz verdadeiro!

A religião não é Deus. A espiritualidade é Tudo e, portanto é Deus.

A religião não indaga nem questiona. A espiritualidade questiona tudo.

A religião é humana, é uma organização com regras. A espiritualidade é Divina, sem regras.

A religião é causa de divisões. A espiritualidade é causa de União.

A religião lhe busca para que acredite. A espiritualidade você tem que buscá-la.

A religião segue os preceitos de um livro sagrado. A espiritualidade busca o sagrado em todos os livros.

A religião se alimenta do medo. A espiritualidade se alimenta na Confiança e na Fé.

A religião faz viver no pensamento. A espiritualidade faz Viver na Consciência.

A religião se ocupa com fazer. A espiritualidade se ocupa com Ser.

A religião alimenta o ego. A espiritualidade nos faz Transcender.

A religião nos faz renunciar ao mundo. A espiritualidade nos faz viver em Deus, não renunciar a Ele.

A religião é adoração. A espiritualidade é Meditação.

A religião sonha com a glória e com o paraíso. A espiritualidade nos faz viver a glória e o paraíso aqui e agora.

A religião vive no passado e no futuro. A espiritualidade vive no presente.

A religião enclausura nossa memória. A espiritualidade liberta nossa Consciência.

A religião crê na vida eterna. A espiritualidade nos faz consciente da vida eterna.

A religião promete para depois da morte. A espiritualidade é encontrar Deus em Nosso Interior durante a vida.

"Não somos seres humanos passando por uma experiência espiritual... Somos seres espirituais passando por uma experiência humana..."

Texto do Prof. Dr. Guido Nunes Lopes.

Graduado em Licenciatura e Bacharelado em Física pela Universidade Federal do Amazonas (FUAM, 1986), Mestrado em Física Básica pelo Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IF São Carlos, 1988) e Doutorado em Ciências em Energia Nuclear na Agricultura pelo Centro de Energia Nuclear na Agricultura da Universidade de São Paulo (CENA, 2001).

DEUS E RELIGIÃO NÃO COMBINAM?!

Depende da religião. Depende do religioso. Pode-se fazer experiência de Deus dentro e fora de uma religião. Cada um tem seu modo de experimentar Deus em sua vida. O erro é generalizar. Generalização é veneno. Ademais, o conceito de religião é o do relacionamento com Deus que se dá através de três caminhos: ético-moral (ex.: "amai-vos uns aos outros..."), cultual (missa, culto, sessão, etc..) e dogmático (ex.: Deus é o criador universal). Portanto muita gente que diz não ter religião pratica uma. O que há é que muitos querem se referir a uma instituição, e acham que isto é sinônimo de religião. Mas até aí também vai depender da instituição, pois há muitas instituições religiosas que são destinadas a fazer o bem. A denominação cristã que mais faz caridade no mundo é a Igreja católica, até porque das denominações cristã ela é a maior. Portanto Deus pode combinar ou não com uma religião, na verdade essa afirmação deve virar-se mais para o religioso, pois em toda realidade onde há seres humanos haverá maldade e bondade, é nesse sentido que afirmo, várias religiões combinam com Deus, vários religiosos combinam com Deus, outros não.

Aníbal Lobão, via Facebook

Documentário em vídeo sobre a história da Igreja Católica e Ortodoxa: https://www.youtube.com/watch?v=QOv72nlbetg

4 comentários:

  1. Carmo do Cajuru, MG, 13.09.2015

    Jensoares

    carioca, da mesma forma que eu o sou.
    Parabéns. Brilhante, esclarecedor, informativo.
    As colocações, postagens, citações e análises superam a pequena física humana e descortinam a tênue fímbria da Física Divina.

    Ótimo. Se me permite, usarei este blog como estudo para nosso grupo na Fraternidade Espírita Meimei Amor Puro (Casa do Caminho de Meimei) que, aliás, convido-o a conhecer: https://www.facebook.com/fraternidadeespirita.meimei

    Fraternalmente

    Harmonia, paz, luz e FÉ,

    Aroldo José Piacesi

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    Respostas
    1. fique a vontade para usar o texto e informações do blog e não apenas dessa página. Obrigado, conto com sua divulgação.

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  2. Deus não atropela a vontade humana, mas age na história. Foi a 2000 anos, mas é como se fosse hoje. Barnabé não foi, foi enviado por Deus atrás de Paulo em Tarso. É que Paulão tinha que participar da fundação da Igreja em Antioquia e como alguns ser também chamado pela 1ª vez de Cristão...:)

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  3. Nós éramos 3 primos. Eu era o menino pobre filho de um carpinteiro pobre, os outros 2 eram meninos ricos filhos de fazendeiros ricos. E Deus agia e agiu assim: eu nunca fui passear nas fazendas deles, eu preferia aqueles que não tinham uma fazenda, tinham uma roça. E o tempo trouxe uma resposta fulminante...tudo foi reconfigurado...:)

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