A ESPADA e A CRUZ: Malco e Pedro


... se a tua mão ou o teu pé te escandalizar, corta-o, e atira-o para longe de ti; melhor te é entrar na vida coxo, ou aleijado, do que, tendo duas mãos ou dois pés, seres lançado no fogo eterno (Mateus 18:8).

Os acontecimentos da crucificação de Jesus (no ano 33 d.C), e outros das primeiras décadas da Era Cristã, ocorreram há dois milênios. Ao longo dos séculos, diversos fatos verídicos foram naturalmente esquecidos ou postos fora dos livros canônicos (Novo Testamento). Alguns fragmentos de memórias transmitidos oralmente se tornaram lendas afastadas da realidade.

Coube aos Espíritos amigos trazer à luz dos tempos atuais detalhes varridos da memória do cristianismo. Com o auxílio de vultos, que hoje habitam as paragens celestiais, tais testemunhos servem de emocionante estímulo à nossa fé cristã.

A fonte do relato abaixo pertence ao angelical Espírito Amélia Rodrigues, através da psicografia do probo médium baiano Divaldo Franco. Intitula-se A espada e a cruz.

Judas traindo Cristo com um beijo, de pavel popov.

Nele, além do nefando desencarne do apóstolo Pedro na cruz (semelhante ao seu Mestre), conhecemos as últimas quadras da vida de Malco, o guarda que teve uma orelha cortada durante a prisão de Jesus no Jardim das Oliveiras.

Amélia iniciou descrevendo a figura de Yosef Bar Kayafa (nome original em hebraico) ou José Caifás, judeu do ramo farisaico, sumo sacerdote do Templo de Jerusalém, de 18 a.C a 36 d.C.

O posto de Caifás era hereditário, surgiu nos tempos de Eleazar (c.1200 a.C), filho de Arão (irmão de Moisés), da tribo de Levi, conforme o Êxodo.

O sumo sacerdote conduziu o processo contra Jesus Cristo acusando-O unicamente de ter se denominado Filho de Deus: uma blasfêmia punível, segundo as leis hebraicas da época, com a morte.


Caifás obteve o apoio de Pôncio Pilatos, governador romano de Jerusalém (já que a Palestina estava sob a colonização de Roma). Pilatos ratificava a acusação afirmando que Jesus se colocava acima do Imperador, que naquele tempo era Tibério.

Os acólitos de Caifás, semelhante ao chefe (o único que podia adentrar no recinto mais sagrado do Templo, o Santo dos Santos), consideravam-se superiores aos demais membros da sociedade por tal ligação. Achavam-se, assim, "mais próximos" da Divindade.

A prisão de Cristo com o episódio de Malco (c.1616), de Dirck van Baburen.

Dentre os asseclas, encontrava-se Meleq ou Malco, jovem ambicioso e de origem desconhecida, que anelava por chamar a atenção e gozar de privilégios, dedicando-se com fidelidade canina ao amo, que lhe notava a ambição desmedida e estimulava-a, a fim de atender ao desmedido egoísmo [p.144].

Caifás carregava despeito frente à figura magnânima e ao mesmo templo simples de Jesus, que obtivera a admiração do povo e até mesmo o respeito de fariseus mais sensatos, como o doutor da Lei Nicodemos.

Jesus era para aquele sumo sacerdote uma humilhante presença. Caifás era superior ao Nazareno em poderes terrenos, mas bastante inferior em posição moral-espiritual.

Detalhe do afresco A prisão de Cristo (beijo de Judas) (1304-06), de Giotto di Bondone.

A Sua entrada em Jerusalém, dias antes, entre ramos, folhas de palmeiras e sorrisos, com que se homenageavam os vitoriosos de retorno ao lar, chegara aos ouvidos de Caifás, que mais se amedrontou em relação a Jesus [p.145].

O líder fariseu instigou a perseguição caluniosa ao Cristo. O fiel Malco, ávido por alçar-se na corte de Caifás, naturalmente era simpático aos sentimentos do chefe. Eis porque praticava ignomínias em nome do Templo.

A onda de crueldade vibrava no ar apaixonado dos indivíduos, quando Jesus despediu-se dos companheiros na ceia e buscou o Jardim das Oliveiras, para preparar-se... [p.145].

Prisão de Cristo com o episódio de Malco (c.1620), de Gérard Douffet.

A noite da tragédia cintilava em estrelas. Após a delação do Iscariote, e conduzidos por este, os perseguidores de Jesus aproximaram-se Dele, do lado oposto a torrente do Cédron, munidos de archotes e armas.

Para o espanto deles, o Nazareno não reagiu e identificou-se. O que se passou foi descrito no Evangelho de uma testemunha ocular, o apóstolo João (18:10-11). Amélia, contudo, deu-nos mais detalhes.

Detalhe de A prisão de Cristo (c.1520), de autor anônimo da Borgonha.

Os amigos que dormiam despertaram assustados e acorreram aos gritos, na altercação que se fez natural, e Pedro, que se encontrava com uma espada, movimentou-a e decepou a orelha de Malco, que se encontrava entre os aventureiros requisitados de última hora para a prisão do Mestre.

Com um urro bestial, Malco começou a vociferar, enquanto a hemorragia escorria abundante.

Sem perturbar-se, Jesus tocou-lhe a ferida aberta em sangue, e cicatrizou-a, advertindo Pedro:

- Embainha a tua espada, porque, quem com ferro fere, com ferro será ferido... 

[p.146].

Jesus sarou o ferimento, mas, diferente do que afirma a tradição, não pôs a orelha no lugar.

Cristo curando a orelha de Malco (c.1600), autoria atribuída ao ateliê de Louis Finson.

O soldado de Caifás ficou estigmatizado pela marca, que assinalava o crime de furto, pois, de acordo com alguns costumes desumanos da época, ladrões eram punidos com a amputação de alguma parte do corpo, como orelha, mão ou nariz.

A corte de Caifás, ingrata e preconceituosa, pôs término às ambições do "aleijado" Malco. O desgraçado, então, decidiu deixar a Judeia para se exilar no coração do Império: Roma; viveu anônimo, na penúria e amargura, entre os demais forasteiros e vagabundos da capital imperial por vários anos.

Embainha tua espada, Pedro, pois quem vive pela espada... morre através da espada!

Duas décadas após os acontecimentos do Getsêmani, no ano 54, subiu ao sangrento trono de Roma o celerado Nero. Iniciaram-se as diligências do não menos cruel Ofônio Tigelino, chefe dos pretorianos (guardas imperiais) e um dos maiores perseguidores dos primeiros cristãos. Malco, revoltado com os seguidores do Carpinteiro galileu, comprazia-se em testemunhar os martírios dos membros da Nova Fé.

Em uma das incursões de Tigelino às catacumbas, por volta do ano 67, Pedro foi agrilhoado na companhia dos seus "irmãos em Cristo". Ao saber que o ex-pescador seria crucificado, dirigiu-se ao "calvário romano" escolhido para o apóstolo: a colina Vaticano.

A cura de Malco (1886-94), de James Tissot.

Malco destoou-se na multidão pungente que acompanhava a via sacra de Pedro, pois vociferava com palavras obscenas contra o cristão, agora ancião, que lhe cortou a orelha cerca de trinta anos antes. Ao alcançarem o cume, enquanto preparavam a cruz, enfim o antigo assecla de Caifás foi notado pelo grande mártir. Um desfecho surpreendente seguiu-se.

... o discípulo renovado de Jesus, convocado a olhar-lhe o lugar da orelha cortada, foi tomado de horror por si mesmo, e recordando-se do Mestre querido, deixou-se arrastar por imensa compaixão pela vítima, ajoelhando-se-lhe aos pés e rogando-lhe perdão.

Num átimo, os legionários [soldados romanos] vendo a cena, seguraram Malco e lhe disseram:

- Se esse a quem vamos crucificar - que é importante entre os seguidores do judeu odiado - ajoelha-te aos teus pés, certamente és muito mais importante do que ele. Crucifique-mo-lo, também...

[pp.147-8, com adição]

Assim, o infeliz Malco, remetendo a visão dos dois criminosos que ladearam Jesus no Gólgota, acompanhou Pedro no martírio da cruz. O ex-pescador galileu ascendeu ao Reino de Deus na paz dos homens de bem. O ex-algoz de Jesus, porém, desceu às trevas do ódio protestando e blasfemando até o último suspiro.

Cristo dando as chaves do Céu a São Pedro (c.1750), de Giambattista Pittoni.

***
Alguns questionam por que Jesus não colocou a orelha de Malco no lugar, afinal, poderes para tal feito Ele possuía. Ora, as Leis de Deus (ou Naturais) não podem ser burladas. Jesus provavelmente observou as provas reencarnatórias que Malco deveria passar com a perda do órgão.

As leis divinas trabalham em sintonia com o livre arbítrio dos homens. A espada de Pedro foi (literalmente, inclusive) apenas um instrumento. Embora o nosso Pai Celestial seja, em princípio, contra qualquer ato violento, Ele respeita o direito de escolha dos filhos e procura atuar nos limites desse direito. Pedro, que no início era um "diamante bruto em processo de lapidação", portava uma arma branca para a defesa (mesmo contra a vontade do Mestre) atendendo as "necessidades" de uma época bem mais violenta do que a nossa.


A perda da orelha, longe do que imaginou Malco, foi uma bênção: a oportunidade de afastar-se da corte criminosa de Caifás. Contudo, o ex-miliciano dos fariseus não aproveitou a chance de mudança de vida. Em Roma, viveu pregado ao rancor e a violência, caminhos que o conduziram à ruína; ironicamente, seguiu a mesma senda infeliz que desejava aos inimigos.



Amélia Rodrigues (1861-1926)

Nasceu em Santo Amaro da Purificação (BA). Quando encarnada foi notável poetisa, professora emérita, escritora consagrada, teatróloga e legítimo expoente cultural das Letras na Bahia.

O pensamento de Amélia Rodrigues se identifica com o pensamento de Fénelon, contido em "O Evangelho segundo o Espiritismo", que solicita a certa altura: "Educar é formar homens de Bem, e não apenas instruí-los."

No Plano Espiritual continuou seu trabalho esclarecedor e educativo, baseada principalmente no Evangelho de Jesus, fonte inspiradora, quando encarnada, para muitos dos seus trabalhos. Desencarnada, encontrou na Espiritualidade maior expansão para seu Espírito sequioso de conhecimento e faminto de amor, dando vazão aos anseios mais nobres, aprofundando-se na Mensagem de Jesus, e, na atualidade, participando da falange de Joanna de Ângelis, mentora de Divaldo Pereira Franco.

Fonte: http://www.feparana.com.br/

Fonte:
RODRIGUES, Amélia (Espírito); [psicografia de] FRANCO, Divaldo Pereira. Até o fim dos tempos. Salvador: Livr. Espírita Alvorada, 2000.


PEDRO E ANICETO

Graças à mensagem intitulada O Natal do apóstolo, do Espírito Irmão X (pseudônimo do célebre autor maranhense Humberto de Campos desencarnado), através da psicografia de Francisco Cândido Xavier, obtemos mais detalhes sobre o injusto suplício de Simão Pedro.

O ex-pescador galileu, feito pelo Mestre Nazareno pescador (evangelizador) de homens, portava mais de oitenta anos e cabelos brancos, quando foi arrancado do cárcere romano e crivado de injúrias pela turba furiosa, que o acompanhava no caminho à cruz. Desolados e misturados na multidão, os companheiros cristãos só podiam observar os passos firmes e serenos dele que não revidava ódio algum aos verdugos. Pedro apenas rogava à Providência o envio de mais obreiros para substituí-lo no cultivo da Boa Nova pelo mundo. 

Vários soldados da escolta tiveram parentes enfermos curados por Pedro e também, em segredo, lamentavam tamanha crueldade. Destoando-se deles estava o guarda pretoriano Sertório Aniceto, que fazia questão de quebrar a atmosfera de reverência e de êxtase que se fazia, desdobrava impropérios. Chamava-lhe de judeu sujo, lixo humano que não servia nem para morrer no fogo dos postes do circo, ladrão imundo que abusava da crendice do povo. O apóstolo, no entanto, apenas contemplava o céu escaldante da tarde e orava em silêncio...

Escalando a colina [Vaticano], via não longe o Campo de Marte, assinalado pelo monumento de Augusto, as cintilações do [rio] Tibre espreguiçando ao sol, o casario imenso, as termas e os jardins; no entanto, regressava pela imaginação à Galileia distante, buscando Jesus em pensamento...

Confortava-se relembrando o perfume das rosas de Betsaida, das romãzeiras de Dalmanuta, das quintas frutescentes de Magdala e dos pequenos vinhedos de Cafarnaum... Sentia até a brisa fresca impulsionando as velas das barcas do Lago de Genesaré, que levavam Jesus para pregar nas margens.

No alto da colina, foi despido pelos soldados e teve os pés e mãos pregados ao lenho improvisado, semelhante ao Cristo no Calvário de Jerusalém. 

Contudo, com a mente voltada ao reencontro com o saudoso Mestre no Paraíso, quase não notou à dor física do martírio. Aguardava paciente a derradeira expiração na cruz de Roma.

Aniceto, entretanto, não o perdia de vista, e, reparando que o crepúsculo baixava, atirou-lhe pontiagudo calhau à cabeça e gritou:

- Morre, bruxo!

O apóstolo observou que o sangue esguichava, mas, sem qualquer reação, rendeu-se a invencível torpor, qual se fosse repentinamente anestesiado por brando sono.


A crucificação de São Pedro (c.1660), de Giordano Luca.

Logo Pedro estava livre do corpo crucificado e sem vida, alheio à algazarra em torno. Contemplava o firmamento que se abria em estrelas (Espíritos) fulgurantes, quando dele desceu Jesus. Sorrindo, o Nazareno acolheu o velho e feliz discípulo nos braços, carregando-o igual criança frágil junto ao coração.

No Plano Maior, recuperou-se (perispiritualmente) por várias semanas em estância reservada pelo próprio Cristo. Depois visitou paragens de inexprimível beleza, recolheu lições preciosas, presenciou espetáculos soberbos da grandeza cósmica e abraçou afeições inesquecíveis...

Em certo momento, o Mestre avisou-lhe que deveria se separar dele novamente.

- Senhor, aonde vais?* Perguntou o apóstolo surpreso. O Nazareno, da luz celestial onde estavam, apontou uma parte escura do Espaço, onde está nosso planeta dizendo:

- Pedro, enquanto houver um gemido na Terra, não me será lícito repousar...

- Então, Senhor, eu também...

Retornaram à Roma, parando no grande cemitério da Via Ápia obscurecido pela noite. O discípulo, emocionado, ouvia vozes invisíveis e celestiais entoando cânticos de louvor ao Natal de Jesus (que ainda, no século I, não era comemorado pela maioria dos homens**).

- Pedro, alguém te chama..., disse-lhe Jesus.

Alí estava Aniceto, com o filhinho em febre, rogando mentalmente, como último recurso, que o "feiticeiro cristão", que curou tantos, segundo diziam, se apiedasse daquele pequeno inocente. Sentindo instintivamente a presença espiritual de Pedro, o carrasco do apóstolo expunha-lhe os remorsos que amargava e pedia-lhe o perdão...

Pedro, invisível aos olhos comuns, curou o menino com passes magnéticos (como fazia quando encarnado) e beijou a fronte do pai. Aniceto imediatamente compreendeu que fora auxiliado pelo cristão que ele próprio ajudara a crucificar. Para o rude legionário de César começava nova vida e para Simão Pedro o serviço continuou... e continua, junto com Jesus, até hoje para nosso benefício.

Fonte: XAVIER, Francisco Cândido (por Espíritos diversos). Antologia mediúnica do Natal. Rio de Janeiro: FEB, 1982, 2a ed., item 61, pp.166-71, com adição.


*Domine, quo vadis?, em latim. O fato ocorreu no Além, mas foi repassado para o plano terreno e sob contexto diferente do original - como alguém que desperta de um sonho e tenta relembrar o que viu e ouviu mas interpreta de forma distorcida -, e apareceu no livro apócrifo Atos de Pedro (Manuscrito Vercelli, XXXV), escrito em grego e datado da segunda metade do século II, ou seja, bem antes da mensagem do Irmão X.

O texto apócrifo (não reconhecido oficialmente pela Igreja romana) afirma que ao fugir de uma provável crucificação em Roma, São Pedro encontrou o Cristo ressuscitado e perguntou-lhe: Quo vadis? E Jesus respondeu: Roman vado iterum crucifigi (Vou à Roma para ser crucificado de novo). Prontamente Pedro ganhou coragem para continuar seu ministério até tornar-se um mártir cristão.

Interessante relatar que o apóstolo João, que foi o último a ter o evangelho divulgado (em c.100 d.C.), também deu sua versão sobre tal pergunta: Simão Pedro lhe perguntou: "Senhor, para onde vais?" Jesus respondeu: "Para onde vou, vocês não podem seguir-me agora, mas me seguirão mais tarde" (João, 13:36). Jesus, Pedro e demais apóstolos estavam reunidos na Última Ceia, e Cristo poderia estar se referindo tanto sobre o martírio quanto a partida para o Reino dos Céus.

Tomando como base o tema, o autor polonês Henryk Sienkiewicz publicou a ficção histórica Quo Vadis: uma narrativa dos tempos de Nero (1895), que foi adaptada para o cinema, mais de uma vez, resultando no sucesso hollywoodiano Quo Vadis (1951). 

Atos de Pedro também relata a crucificação de Pedro de cabeça-para-baixo, já que o apóstolo não se achava digno de morrer igual ao Mestre. No entanto, como não foi confirmado no testemunho espírita, provavelmente não passa de mais uma lenda do cristianismo popular.

**Notamos também que a narrativa do Irmão X não descreveu que havia neve ou que o tempo estava frio no cemitério da Via Ápia (características típicas do inverno em Roma), levando a entender que, muito provavelmente, Jesus não nasceu no mês de dezembro. Além disso, provavelmente os despojos de Pedro foram sepultados naquele cemitério romano, para onde Aniceto levou a filha enferma. Seria, então, um indício do início da veneração aos túmulos dos santos cristãos.

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